Review | Dahmer: Um Canibal Americano
Dar mais atenção para tais casos é perpetuar o histórico ou é necessário olhar para a psicopatia como um fato social?
Recentemente lançada pela Netflix, a série “Dahmer – Um Canibal Americano”, está atraindo certa atenção do público de streamings. Protagonizada por Evan Peters no papel de Jeffrey Dahmer, o elenco conta com Richard Jenkins como Lionel Dahmer (seu pai) e Niecy Nash como Glenda Cleveland (a vizinha do último apartamento onde morou).
Jeffrey Dahmer foi um psicopata norte-americano que, de 1978 a 1991, assassinou 17 homens. Entre eles, 15 eram negros e imigrantes. Na faixa entre 14 e 32 anos, apenas dois não eram homossexuais. Além de assassinar, Jeffrey praticou estupro e necrofilia, assim como os torturava, desmembrava os corpos, ingeria órgãos e conservava ossos e membros. Ao longo dos anos, tornou-se um caso notório entre os serial killers estadunidenses.
A opção de Evan para o protagonista não surpreende com a escolha de nenhum dos outros atores a interpretar o psicopata em produções anteriores a de 2022: Ross Lynch, Carl Crew, Jeremy Renner e Rusty Sneary: só conferir que o estereótipo não muda, ainda mais quando caracterizados para tal papel. Sempre optando por uma ordinária beleza americana e certa pinta de galã, talvez tentem emular a suposta atração que Dahmer causava em seus potenciais parceiros – não importa quão maltrapilha está a aparência do personagem – que poucas vezes é demasiadamente nojenta.
Para começar a série, como uma habitual retrospectiva dramática, ela já entrega para o que veio: contém recheio de violência explícita, com cenas de briga, morte e morbidez. Mas, se formos parar para pensar, é fichinha perto do que Dahmer realmente fez, todos seus requintes de crueldade, do fim ao começo.
No primeiro dos dez episódios, um homem que seria sua mais nova vítima, consegue escapar da tentativa de homicídio. Ao correr pela rua chamando por ajuda, encontra uma viatura policial, que após certa desconfiança o acompanha até a casa de Jeffrey para averiguar o caso. BUM! Ele é descoberto. A partir daí, a obra começa a intercalar seu presente mais recente (o fim da série de assassinatos e a responsabilização pelo que cometeu) com as raízes de sua infância. Vamos observando seu crescimento, sua experiência no colégio, a separação de seus pais, seu interesse por homens, a dificuldade de sociabilidade, e o desenvolvimento bem sucedido de suas atitudes assassinas – por mais que ele não fosse frio, calculista, e apagasse seus vestígios, estava mais para um cientista carniceiro.
Embaladas por uma trilha oitentista com Lisa Stanfield, Sade, Crystal Waters e uma fotografia amarelada meio sépia – principalmente em cenas no apartamento de Dahmer – uma por uma, as vítimas caem em mentiras e falecimento por suas mãos, em sua residência. Essa história, infelizmente, não é sobre as vítimas. É sobre Dahmer: sua vida, seus crimes. O protagonista está dado, não é como se houvesse cada episódio para contar o antes e o depois de cada jovem negro, o que restou para seus parentes, e Jeffrey fosse apenas um figurante que de repente mudou os rumos da história.
Algumas famílias, ao longo dos anos de repercussão do caso – que atualmente é considerado legalmente domínio público – processaram os responsáveis pela utilização dos nomes das vítimas em produtos do entretenimento, como filmes e livros. É certo que a história está aí e pode ser contada por muitos de inúmeras maneiras, por vezes até pior. E o que vale para grandes produtoras é a audiência – que inclusive a série bateu na Netflix -, logo vão filmar e rodar mais uma dessas histórias. Eles são ótimos em produzir filmes e serial killers. E quanto mais serial killer mais filme sobre. Isso tem influências severas na cultura de outros países, principalmente nos “faroestes sobre o Terceiro Mundo”. Não à toa O Bandido da Luz Vermelha (1968), filme de Rogério Sganzerla inspirado na figura de um criminoso brasileiro, teve como referência outro assassino estadunidense que usava uma lanterna vermelha para anteceder seus crimes.
É engraçado também perceber que a maior parte dos assassinos em série reconhecidos pela lei e pela mídia são homens e brancos, o que confere a eles uma série de patologizações diagnosticadas pela comunidade médica, pela legislação vigente, que pessoas pretas, por exemplo, não tem o mesmo direito, não passando de quaisquer criminosos – nesse caso ainda bem, talvez.
O próprio deslumbre que Dahmer se acomete quando começa a receber cartas e presentes de seus fãs na prisão já mostra o frenesi de sua causalidade na atmosfera social, um delirioso espetáculo da violência. Frequente entre muitos assassinos, ele ganha fãs, se torna uma estrela, uma figura pública.
Mesmo com diretores e diretoras negras construindo, capítulo após capítulo, trajetórias moralmente insólitas para os “pobres jovens negros homossexuais” que foram assassinados por Jeffrey, dedicando episódios inteiros para nos contextualizar nas narrativas de vida desses jovens ou nas dores do luto mal resolvido por parte dos parentes, o sentido do holofote permanece em seu personagem. Ali acentuam-se os abismos entre esses sujeitos e Dahmer, representando como suas vítimas eram pessoas sem acesso e foram impedidas de ter a vida inteira pela frente – o episódio sobre Tony Hughes, intitulado “Silenced”, é uma tentativa de redenção a partir da sensibilidade do sofrimento alheio. Antony era surdo e tinha o sonho de ser modelo.
Apesar da crítica feita à falta de vontade dos pais de Dahmer a destinar os lucros das vendas do livro que escrevera para as famílias das vítimas e à negligência de um Estado racista, a produção aparentemente não declarou parte da verba disponibilizada e rentabilizada com a série para os familiares das vítimas – perpetuando assim mais uma história de trauma sem restituição. A autocrítica se mantém num exímio lugar de conforto, onde acenam de longevos altos picos dizendo que dessa vez vão melhorar.
Mas a maior lástima é que, ao final de tudo, em caráter indexador as palavras mais citadas nos anais da “História” sejam a do assassino, e não das vítimas. É cabível expor os nomes ou seria retornar ao trauma? Dar mais atenção para tais casos é perpetuar o histórico ou é necessário olhar para a psicopatia como um fato social? O medo incentiva ou previne? Por que a violência tanto vende?
Pegando carona nas pautas identitárias de 2022, a série tenta vender o peixe de uma revisitação histórica sobre um trágico caso. O que fica são alguns dígitos de lucro e uma novelinha triste para contar.
Dahmer – Um Canibal Americano (Dahmer – Monster: The Jeffrey Dahmer Story)
Criado por: Ryan Murphy e Ian Brennan
Emissora: Netflix
Elenco: Evan Peters, Richard Jenkins, Molly Ringwald, Niecy Nash e Michael Learned
Ano: 2022
Ótimo texto! Ainda estou na dúvida se vou abraçar o “hype” ou não dessa série. Mas tá lá na lista infinita de coisas pra assistir.