Crítica | Blade Runner 2049
Que atributo é capaz de definir o ser humano? E, afinal, é tão importante mesmo assim ser humano?
Ao lado da existência de Deus, o dilema da própria existência talvez seja daqueles que mais atormentam a humanidade ao longo da história, e talvez também aquele que nos define enquanto espécie.
Não podia se esperar uma temática diferente de um filme que tem entre seus elementos principais a Inteligência Artificial. Porém, embora seja fiel ao cenário e contexto estabelecidos no clássico de Ridley Scott, Denis Villeneuve opta por uma abordagem metafísica distinta, e a partir daí se destaca criando uma obra própria, e que ao mesmo tempo preserva uma continuidade. E é esse equilíbrio improvável, narrativo e metanarrativo, que parece ser o principal diferencial de Blade Runner 2049. E a partir daí há novos desdobramentos para uma das principais investigações ontológicas de que se tem notícia: não basta saber o que nos define enquanto ser humanos; nos tempos de hoje, vale a pena questionar se ser humano seria de fato algo tão valioso quanto gostamos de crer. Não haveria uma alternativa melhor? Para nós e para o mundo?
A opção ontológica de Villeneuve, nesse sentido, recorre ao mito do nascimento. Esse será também o fio condutor da jornada do personagem de Ryan Gosling, cuja profissão dá nome ao filme. Uma jornada tipicamente helênica e aparentemente edipiana, que parece fugir de uma típica estrutura narrativa noir ou cybernoir. Gosling, que não é particularmente conhecido por sua expressividade, a propósito, encontra no papel do caçador de replicantes uma pele que lhe cai como uma luva.
Apesar de ter nomes de destaque em seu elenco como Robin Wright e Jared Leto, as atuações não são o que mais chama atenção em Blade Runner 2049. Ainda assim merece uma menção honrosa a atuação de Sylvia Hoeks como a implacável Luv e o cada vez mais surpreendente Dave Bautista que foi capaz, ao longo dos anos, de superar todas as suas limitações de início de carreira. Porém, Villeneuve em linhas gerais usa seus atores e personagens de maneira funcional para conduzir a narrativa que se destaca mesmo pelos aspectos técnicos.
Nem mesmo a presença de Harrison Ford, servindo como uma espécie de elo perdido entre a nova versão e o clássico de 1982, é mais importante do que a atmosfera e o ambiente que são o principal personagem da película. Blade Runner 2049 é um noir, como o clássico que lhe antecede, mas também tem pretensões épicas. Uma combinação potencialmente desastrosa comumente encontrada em filmes B, mas que a sutileza, a ironia e a sensibilidade artística do diretor são capazes de transformar em um todo heterogêneo que funciona de forma muito satisfatória narrativamente.
Essa mesma estranha composição de opostos ordinariamente irreconciliáveis se percebe no design de produção, na fotografia, no enquadramento e em toda estética que perpassa a obra. Villeneuve, a exemplo, abre a fita com suas já características tomadas áreas – como um pintor apresentando a tela sobre a qual irá trabalhar a seguir -, e prossegue com planos fechados, meticulosamente planejados. O resultado é um compósito constante entre claustrofobia e desnorteamento em meio a uma imensidão labiríntica. Sendo bem explícito no trocadilho pretendido, Villeneuve anda no fio da navalha durante todo o tempo, e o faz isso com a competência que lhe é típica.
Nada ali está colocado sem um propósito. Tudo serve para contar a história mais importante que está sendo apresentada, não a história do filme, mas a história daquele mundo. Cada detalhe de cada cenário explorado serve a esse propósito de criação e desenvolvimento de um mundo fantasticamente frio e desolado que nos fora apresentado em 1982, e que consegue se aprofundar ainda mais nessa realidade sombria e desesperançosa. Nada mais real, portanto.
A fotografia do costumeiro parceiro Roger Deakins segue na mesma linha e é um espetáculo à parte que confere à Blade Runner 2049 boa parte de sua densidade narrativa. Deakins trabalha como poucos luz e contraluz criando em vários momentos um ambiente noir que beira a perfeição com uma clareza – não de luz apenas, mas também de composição – rara em qualquer película da atualidade. Ao mesmo tempo o brilho do neon, que se tornou assinatura de toda uma sub-linguagem da cultura pop – seria demais dizer que a estética cyberpunk teve sua forma mais bem resolvida apresentada ao mundo através do Blade Runner original? -, se projeta nos cenários, nas pessoas e no próprio ambiente com uma plasticidade arrebatadora.
E nesse mesmo sentido poderíamos discorrer sobre inúmeros outros elementos da parte técnica da fita que acompanha como uma orquestra bem afinada seguindo a batuta de um hábil maestro. Porém o melhor mesmo é vivenciar a experiência. Como qualquer grande obra, Blade Runner 2049 desafia a audiência a forjar sua própria experiência com ela. E há tantos elementos e referências ali que as experiências podem ser as mais diversas possíveis. Desde as mais intensas às mais triviais. Cada um capaz de nos fazer sentir mais, ou menos, humanos.
Talvez seja precipitado classificar Blade Runner 2049 como uma obra-prima. O próprio original demorou para ser considerado um cult. Mas sem dúvida alguma é uma das obras mais bem acabadas do gênero, tanto do ponto de vista técnico, quanto narrativo e das atuações. Em tempos de inanição intelectual, narrativa e visual, Blade Runner 2049 é um espetáculo que merece ser conferido na telona, e que vale cada centavo de seu ingresso.
Uma frase: “Células interconectadas por dentro.”
Uma cena: K, Joi e Mariette performam a cena de amor mais visualmente arrebatadora da primeira metade do século XXI.
Uma curiosidade: O futuro apresentado no filme não é o nosso futuro, mas o futuro do filme de 1982. Por conta disso percebemos diversos elementos que eram imaginados como o futuro da humanidade em 1982, extrapolados 30 anos à frente, mas que nos dias de hoje sequer existem mais.
Blade Runner 2049
Direção: Denis Villeneuve
Roteiro: Hampton Fancher e Michael Green.
Elenco: Ryan Gosling, Robin Wright, Ana de Armas, Dave Bautista, Sylvia Hoeks, Jared Leto, Mackenzie Davis e Harrison Ford.
Gênero: Ficcção Científica, Drama, Thriller
Ano: 2017
Duração: 163 minutos.
Graus de KB: 1 – Ryan Gosling e Kevin Bacon atuaram juntos em Amor a Toda Prova (2011).
Poucos conseguem capturar a essência de uma obra como você Pox. Realmente um texto espetacular para um grande filme que, concordo contigo, talvez seja cedo de chamar de obra-prima, mas a gente espera até se tornar uma e virar um cult como foi o clássico.
“Blade Runner 2049” é um filme muito bem feito, mas, ao mesmo tempo, bastante anticlimático. Gostei, no entanto, muito da maneira como foi feita a ponte com o filme de 1982. Achei muito interessante e perspicaz a saída que foi adotada pelo roteiro.