Crítica | Me Assuste (Scare Me)

Crítica | Me Assuste (Scare Me)

Não precisa lembrar de nenhum clássico do terror, pois esse filme vai rememorar vários.
Assim, caso não se recorde ou não conheça determinados recursos, é só assistir tal
trabalho: ele está permeado, hora sim hora sim, de referenciais deste gênero fílmico. Isso
não significa que os efeitos de sentido de terror, de amedrontar, ou apavorar, causem
verdadeiramente algum medo ou repulsa. Na maior parte da narrativa, se é que podemos
dizer, surtem o efeito contrário, o do riso – e é na miscelânea de terror e comédia que “Me Assuste” (Scare Me) se localiza.

Luz, câmera, ação: estamos em uma viagem de carro, uma mulher (Bettina, interpretada
por Rebecca Drysdale) dirige o automóvel no banco da frente, puxa conversa com o
passageiro (Fred Banks, interpretado por Josh Rubens) que ela está conduzindo para certo
destino final. Ele é escritor e isso a interessa, uma vez que a mesma também se aventura
pelas letras, mas o autor parece não querer muita conversa. Tudo certo, eles chegam na
casa, sujeito entregue na residência, até logo.

A maior parte do filme se passa em uma casa de campo, daquelas de madeira, posicionada
entre as montanhas e isolada do restante da sociedade, em parte longínqua de determinado
vilarejo, também isolado. Esse chalé, com ares de retiro da urbanidade, parece ser o
cenário ideal para a história que assistiremos a seguir.

Nos primeiros minutos do longa, já escutamos vozes e indícios de assombrações. Algo de
tenebroso está por vir, mas não vem nunca. O cara fala sozinho, interpreta personagens
que conversam entre si, como personalidades múltiplas dissonantes. Nesse curto período
de tempo, temos a ligeira impressão que ele é o vilão, o mal presente, tendo atitudes
estranhas e suspeitas. Mas essas pistas, em red flags, logo são descartadas para dar
continuidade a outras cenas, na maior normalidade dos mundos.

Determinado dia, Fred decide caminhar de manhã pelas redondezas, fazer aquele cooper
básico para praticar uma atividade física e desvanecer as ideias. Nesse exercício matinal,
acaba encontrando Fanny Addie (interpretada por Aya Cash), que também é escritora – por
sua vez, muito bem sucedida e autora de best-sellers – e está ali pelo mesmo motivo.
Ambos são autores de histórias de terror. Que ironia, não? Dois escritores se isolam no
campo para fertilizar suas respectivas literaturas, naturalmente algo de fatídico está por vir.

Determinada noite há um completo apagão causado por uma tempestade de neve. Fanny
aparece na residência de Fred buscando companhia nesta tempestuosa noite. Não se sabe
como foi parar ali, mas ali está. Ela entra, e a partir de uma breve interação, ambos tem a
brilhante ideia de iniciar uma contação de casos de terror. Como são escritores, há um
mundo fértil imaginativo que potencialmente discorrem, e começam a desenvolver uma
dinâmica na brincadeira, pedindo um ao outro que o assuste, daí o desemboque no título do
longa.

Eles se complementam e provocam um a história do outro, tranquilamente um roteiro de
cinema, encenado por ambos. Interpretam as personagens, que às vezes são muitas, o que
os faz ter que representar uma, duas ou mais personalidades. Caras e bocas, expressões
faciais, mudanças repentinas de diferentes personagens, de estados de humor. Há uma
caricaturagem dessas formas de atuar, que ao mesmo tempo entrega dramaticidade, mas
pelo exagero e não continuidade vão para o cômico.

“Melhore isso”, “faltam detalhes aqui”, são algumas das frases trocadas como pequenos
intervalos da construção dos casos, principalmente proferidas de Fanny para Fred, em
postura crítica às formas de construir uma história. Assim vão criando, inventando a
narrativa aos poucos, processualmente. Detalhes, cores, objetos, cenários, cheiros, gestos,
movimentos, diálogos – isso tudo compõe a complexitude de uma história, seja ela escrita ou
filmada.

Em determinado momento, mais para o meio do filme, ambos têm fome e decidem pedir
uma pizza. Se não há nada ao redor e a obstrução da energia elétrica, o impedimento de
trânsito nas rodovias os deixa mais distantes, isso não é motivo para a pizza deles não
chegar. O entregador de pizza Carlo (Chris Redd) chega ao destino do cliente com a
encomenda, sem querer os assusta com a entrada, mas logo essa tensão é dispersada e o
motoboy começa a comer com eles. Facilmente se apessoam e estreitam laços a ponto de
criar trocas íntimas, com Carlo entrando na brincadeira deles e também participando das
assustadoras histórias. Alguns diálogos chegam a ser banais em sua trivialidade, como se
há tempos se conhecessem ou precisassem se conhecer, onde de fato nada de grandes
surpresas fossem acontecer.

Uma das cerejas do bolo é o momento onde Fanny e Carlo interpretam Vênus, livro de
terror best seller da mesma, atentos aos detalhes de representação e fidedignidade à
história literária – uma vez que Carlo é admirador inveterado dos livros da protagonista.
Figuras fantásticas, como licantropos, trolls, e enredos sobrenaturais aparecem nos casos,
auxiliando a criar esse universo imaginativo assustador. Como se trata de um filme que a despeito do riso, possui a temática do terror, o espectador fica esperando algo de fato ruim
acontecer. Poupem-se no cômico, pois o trágico virá.

Chegando ao final do filme, a discussão começa a ser tensionada. O entregador já foi
embora e Fred descobre que Fanny está anotando as falas e os acontecimentos daquela
noite em um pequeno bloco de notas para escrever sua própria ficção. Eles se
desentendem, e no calor da madrugada e das mil e uma histórias, inicia-se um controverso
debate sobre autoria, apropriação de ideias – que há muito vem permeado o universo da
propriedade intelectual. Mas Fred não aceita. Voltamos aos momentos iniciais de um filme:
as explícitas pistas de estranhamento com seu comportamento se confirmam, ele é louco –
e agora um assassino em ação.

A perseguição termina em morte do perseguidor, onde o escritor cai na própria armadilha e
termina atravessado por uma arma que estava tentando acertar Fanny. Ela, ao presenciar o
acontecido, corre o mais rápido que pode para fora dali, deixando o caderno de anotações
no chão da residência. Tempos depois, a motorista Betina – que aparece no começo do
filme – volta à casa para buscar o hóspede. Ela se depara com toda a cena de sangue e
destruição, e abismada encontra o livreto de anotações.

A ironia presente no debate sobre autoria chega ao ápice quando depois de todas as ideias
ficcionais e brigas acarretadas pelo protagonista, inutilmente terminam em tragédia. A
coadjuvante que aparece nos iniciais momentos do filme, tem seu alívio somente ao final,
quando de aspirante a escritora profissional, vira a mais nova autora de um best seller, livro
este que redigiu todo com base no caderno de Fanny, encontrado na cena do crime. A
questão de autoria aparece aqui como um sarcástico riso à morte do autor.

A representação do personagem negro, Carlo (Chris Redd), cumpre a mera função de
coadjuvante sem ligação com o enredo primeiro, mas gera um respiro entre o duelo dos
autores. Entre a cruel terceirização do ofício de seu personagem, atravessando uma
tempestade de neve para entregar comida para os escritores, também ameniza os
potenciais conflitos que estão por vir. É como se fosse mais uma reprodução do lugar
comum, dessa vez sem grandes compromissos ou responsabilidades. No absurdo roteiro,
não é o mais atípico dos acontecimentos, pelo contrário, os anuncia.

O longa cria sustos através das tensões de câmera, com enfoques em determinado ponto
de vista, excluindo outros, mas principalmente o som muito auxilia a construir a diegese. Por
recursos de ruídos, rangidos, manejos vocais fantasmagóricos somados às habituais trilhas
sonoras de suspense, explicitam o quão manjada é a nossa educação sonora e os efeitos
de sentido que em nós gera.

Há uma vasta autoreferenciação de outros produtos da cultura estadunidense, como Senhor
dos Anéis
, Misery, A Star is Born, American Idol, entre outros – e acreditem, tem até espaço
para um número musical dramático.

Abusando de situações clichês (algo me retoma à série Scream Queens), o filme reproduz
lugares mais que comuns. Inicia com um tradicional terror, baila horrores pela comédia
embasada no over acting, para deitar novamente na fama que fez a cama da adrenalina, do
conflito, da morte. A trilha de fato ajuda a tensionar as expectativas: estamos tão acostumados com determinadas funcionalidades sonoras em nossas interpretações auditivas, que também nos assustamos mesmo que não haja motivos. Talvez esteja aí a potência da obra, em seu anticlímax: a saturação dos chavões e a esperada reviravolta resultam em um filme divertido e tenso, de literatura e cinema, de escritor e espectador, de risos e de morte.


Uma frase: “Eu não tenho um discurso preparado, logo eu não farei um”, proferida por Carlo.

Uma cena: As interações com o entregador de pizza. São a cereja do bolo do absurdo no anticlímax do terror.

Uma curiosidade: O filme foi dirigido, roteirizado e protagonizado por Josh Ruben (Fred Banks nas telas).


Me Assuste (Scare Me)

Direção: Josh Ruben
Roteiro: Josh Ruben
Elenco: Aya Cash, Josh Ruben, Rebecca Drysdale e Chris Redd
Gênero: Comédia, Terror
Ano: 2020
Duração: 104 minutos

Noah Mancini

Bacharel Interdisciplinar em Artes e Design pela UFJF, MBA em Comunicação e Marketing pela Faculdade Descomplica e Mestrando em Cinema e Artes do Vídeo pela UNESPAR. Arte, crítica e deboche.

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