Crítica | Medusa (2021)

Crítica | Medusa (2021)

É triste constatar o quanto o mito da Medusa da mitologia grega ainda parece atual no Brasil de hoje, onde as mulheres são condenadas pela sociedade ao expor sua sexualidade de maneira livre e sem julgamentos. O filme da diretora Anita Rocha da Silveira utiliza essa história como inspiração para a trama do seu longa-metragem, do qual também é a roteirista. Na obra cinematográfica vemos uma distopia na qual nosso país foi dominado pelo controle das igrejas. Assim, acompanhamos a protagonista Mariana (Mari Oliveira) que durante o dia faz parte do grupo Preciosas do Altar, um conjunto pop que canta músicas de louvor à Deus. Mas ao cair da noite elas colocam máscaras e rondam pela cidade em busca das infiéis, obrigando-as a aceitar Jesus em sua vida.

Todas as integrantes do grupo poderiam ser classificadas como “belas, recatadas e do lar”, onde a beleza é fundamental no objetivo principal de suas vidas, que é arrumar um marido. “Medusa” é uma distopia, mas infelizmente ela é mais parecida com o mundo real do que gostaríamos. Não por acaso a protagonista trabalha em uma clínica de estética, que justamente vende aos seus clientes o mito da juventude eterna. A vida de Mariana toma um rumo diferente após ela ser ferida no rosto durante uma das ações das Preciosas do Altar e assim ter sua beleza “prejudicada”. É a partir desse ponto que a narrativa apresenta sua trama principal.

A estética de “Medusa” tem influência dos anos 1980 e percebemos isso logo no início do filme em uma cena na qual o grupo Preciosas do Altar anda pela rua feliz da vida após uma ação bem-sucedida ao som de “Cities in Dust“, da banda Siouxsie and the Banshees, lançada em 1986. A trilha sonora original, composta por Bernardo Uzeda em parceria com a própria Anita Rocha da Silveira, também tem é influenciada pelo período com uso de sintetizadores com uma pegada meio John Carpenter, diretor que também compunha a trilha de suas obras cinematográficas.

A fotografia de João Atala também tem inspiração no período e utiliza muito bem as cores para definir os sentimentos da narrativa. O principal é o duelo entre o rosa e o verde. A primeira fica em destaque nas cenas dentro da igreja, simbolizando o amor puro existente no local. Já a segunda reflete o mistério e tensão em torno do hospital de pessoas em coma na qual a protagonista vai trabalhar.

Mariana decide investir sua vida em investigar um mistério em torno de Melissa (Bruna Linzmeyer), uma mulher que foi categorizada como “meretriz” e, assim como a Medusa, teve seu rosto deformado, mas no caso dela foi através do fogo. Após o incidente ela sumiu, então a protagonista vai em busca do paradeiro dela e assim resolve trabalhar no hospital por acreditar que ali seria onde Melissa estaria escondida.

Esse mistério é o fio condutor da narrativa de “Medusa“, mas é através dos simbolismos e de temas que permeiam a história é que o filme de Anita Rocha da Silveira ganha força. A estética é importante, mas é com o roteiro e as atuações que o longa-metragem se destaca. O elenco conta com novatas, mas elas mostram muito talento, principalmente Mari Oliveira que tem bastante carisma. A transformação que ela apresenta Mariana durante o longa-metragem impressiona. Isso também se reflete no figurino, que fica mais desleixado, e na maquiagem e cabelo, mostrando o quanto a personagem se livra da ditadura da beleza imposta pela sociedade.

A influência da igreja no cotidiano das pessoas e nas decisões políticas do país aparecem através da figura do Pastor Guilherme, interpretado por Thiago Fragoso, que além de pregar em seu templo divide o seu tempo com uma campanha política. Temos também uma versão masculina das Preciosas do Altar que tem treinamento militar e funcionam como polícia, reprimindo os infiéis que saem da linha. Mais uma é importante citar que apesar de “Medusa” ser uma distopia, ela parece verossímil demais.

Contudo, é através da relação entre as personagens femininas que o filme mostra o seu objetivo principal que é refletir e questionar sobre o papel da mulher na sociedade brasileira. A melhor amiga de Mariana é Michele (Lara Tremouroux), que é a líder do grupo Preciosas do Altar, cantora principal e influencer. Um dos momentos mais simbólicos é quando Michele ensina aos seus seguidores como tirar uma selfie de acordo com o padrão divino. A amizade entre elas é abalada quando a protagonista lentamente se questiona sobre o que está fazendo com sua vida e sobre os dogmas da religião, especialmente ao se entregar aos prazeres da carne. Isso se reflete entre as outras integrantes do grupo, fazendo com que surja uma enorme vontade de gritar e se rebelar contra o controle da igreja e dos homens.

O filme ainda encontra espaço para encaixar alguns números musicais do grupo Preciosas do Altar, com canções originais que emulam e ironizam às músicas gospel. Dessa forma “Medusa” transita muito bem entre fantasia e terror sem perder a coesão. Só mostra e comprova a ambição do trabalho de Anita Rocha da Silveira que resulta em um ótimo longa-metragem, apresentando ecos da realidade sob influência da extrema-direita e do conservadorismo, que mostram o quanto uma distopia pode parecer tão real.


Uma frase: “Uma vez eu li que os nomes de garotas que começam com a letra M são nomes de meretrizes. Marias Madalenas… Mariana… Monstras.”

Uma cena: Quando Michele ensina como tirar selfies de acordo com o padrão divino.

Uma curiosidade: O filme foi o grande vencedor da Première Brasil do Festival do Rio em 2021, com os prêmios de Melhor Filme, além de ter recebido os prêmios de melhor direção e melhor atriz coadjuvante para Lara Tremouroux.


Medusa

Direção: Anita Rocha da Silveira
Roteiro: Anita Rocha da Silveira
Elenco: Mari Oliveira, Lara Tremouroux, Joana Medeiros, Felipe Frazão, Bruna G, Carol Romano, João Oliveira, Bruna Linzmeyer, Thiago Fragoso e Inez Viana
Gênero: Fantasia, Terror
Ano: 2021
Duração: 127 minutos

Ramon Prates

Analista de sistemas nascido em Salvador (BA) em 1980, mas atualmente morando em Brasília (DF). Cinema é sem dúvidas o meu hobby favorito. Assisto a filmes desde pequeno influenciado principalmente por meus pais e meu avô materno. Em seguida vem a música, principalmente rock e pop.

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