Crítica | Tár (2022)

Crítica | Tár (2022)

O principal tema abordado pelo diretor Todd Field em “Tár” é a “cultura do cancelamento”. É possível separar a obra do artista e apreciar o trabalho dele apesar do seu comportamento inapropriado? É uma discussão interessante, principalmente atualmente onde as pessoas são “canceladas” frequentemente nas redes sociais após falar ou fazer alguma “besteira”. Obviamente que existem aqueles que devem sim ser julgados, mas a pressa em condenar ou odiar em alguns momentos fala mais alto. Contudo, o cineasta apresenta um contraponto e uma provocação ao espectador ao realizar um excepcional estudo de personagem, que ganha ainda mais força graças a incrível atuação de Cate Blanchett como a protagonista Lydia Tár.

Logo na primeira cena, a vemos participando de uma entrevista no Festival de Nova York e o roteiro, escrito pelo próprio Todd Field, aproveita da figura do entrevistador para apresentá-la. Dessa forma o homem faz um resumo de sua carreira, citando todos os seus grandiosos feitos e em seguida a questiona sobre isso. A resposta mostra que Lydia é aparentemente modesta, tem um grande amor e conhecimento sobre história da música clássica, além de ter opiniões bastante fortes sobre o tema. Assim, de forma orgânica, o diretor nos introduz ao universo da personagem e a imersão é iniciada.

Por se tratar de um estudo de personagem, “Tár” não apresenta uma trama convencional, mas sim nos mostra o cotidiano da personagem. Assim o espectador aos poucos conhece mais sobre Lydia Tár, tanto seu lado profissional enquanto participa dos ensaios de uma orquestra em Berlim da qual ela é a condutora, quanto do seu lado pessoal junto com sua companheira Sharon (Nina Hoss) — que também faz parte da orquestra — e a filha pequena Petra (Mila Bogojevic). É interessante também a relação dela com a assistente Francesca (Noémie Merlant), que também é musicista. Fica claro que a funcionária deseja trabalhar na parte musical e não ficar simplesmente atendendo telefone, respondendo e-mails e cuidando da agenda da chefe.

Além de todos esses deveres, Lydia também arruma tempo para compor e para isso vai para um outro apartamento para ter um isolamento da própria vida. Assim com todos esses detalhes do cotidiano descobrimos que sim, ela é muito talentosa em sua profissão, mas obviamente não é uma pessoa perfeita. Um conflito surge quando Francesca avisa que continua recebendo mensagens de uma mulher chamada Krista, mas Tár pede para que ela ignore a questão. Nisso surge algo do passado que abala a vida da protagonista.

Após nos apresentar a Lydia Tár, o diretor Todd Field provoca o espectador, que agora conhece a personagem a fundo, então fica a questão: será que Tár merece ser cancelada? Não existe resposta correta, mas o cineasta propõe uma reflexão interessante e que faz muito sentido na atualidade. Além disso, Field também aproveita para fazer uma crítica ao universo de Hollywood no desfecho da história da protagonista.

Além disso, “Tár” também entrega ao espectador uma imersão fascinante sobre o universo da música clássica, seja através do funcionamento da indústria e das pessoas que fazem parte dela, como também através de uma experiência musical. A trilha sonora de Hildur Guðnadóttir é belíssima, alternando temas mais intimistas com alguns atonais, mostrando a mudança de humor da protagonista. Também temos canções executadas ao vivo pela orquestra, que é regida de verdade por Cate Blanchett. Um ótimo momento também é quando a atriz divide a cena com Olga, interpretada por Sophie Kauer que é violoncelista de verdade e aprendeu a atuar especialmente para tentar papel no filme. Essa veracidade contribui ainda mais para o aprofundamento musical da narrativa.

A montagem de Monika Will também é fundamental para “Tár” ao apresentar o cotidiano da protagonista sem ser repetitivo, fazendo também uma alusão a importância do tempo, essencial no universo da música. Dessa forma, o ritmo natural da narrativa contribui para a imersão no dia a dia de Lydia Tár, sempre com uma quebra natural do momento em que ela vai dormir. Através de pequenos trechos de sonhos, aprendemos mais sobre o lado psicológico da personagem e notamos de forma mais orgânica a passagem dos dias.

A fotografia de Florian Hoffmeister é importante também para a questão do tempo e do ritmo da narrativa. Assim, em alguns momentos, temos planos mais longos mostrando a protagonista caminhando, sem muitos cortes para não quebrar a fluidez. Um bom exemplo de como isso é bem utilizado é na cena em que Tár vai na faculdade de Juilliard dar uma aula. A cena não tem corte, então a câmera acompanha a personagem enquanto ela se movimenta dentro da sala de aula e mantém o espectador atento à tensão criada no momento, sem perder o timing dos atores em cena.

Por último, mas nem por isso menos importante, é necessário falar sobre a atuação de Cate Blanchett. Ela entrega uma performance hipnótica, onde a parte física também é fundamental. No momento em que ela está regendo a orquestra é justamente quando vemos o lado mais emocional da personagem e é a hora que a atriz apresenta de maneira brilhante as emoções sentidas por Tár. A forma de falar também é interessante, especialmente nos momentos em que ela fala sobre alguma coisa da história da música. Blanchett mostra o quanto o ritmo na hora de falar diz muito sobre a personagem, que demonstra todo o conhecimento, mostrando que sabe do que está falando, mas sem parecer que é superior a quem está ouvindo. A paixão pela música transpira através dela, seja através do corpo ou da voz. Esse amor é também um tema importante dentro do filme.

Ou seja, o que Todd Field propõe com “Tár” é uma reflexão sobre o mundo da arte através do universo da música clássica. É importante saber sobre a vida de um artista para entender melhor sua obra, mas ao mesmo tempo é necessário fazer um distanciamento entre as questões pessoais do artista. É possível fazer essa separação? É uma discussão interessante e que o cineasta não pretende responder de maneira fácil, mas sim provocar o espectador a respeito do tema. Fazer isso através de uma imersão musical dentro da música clássica é uma excelente experiência, que ainda conta com o diferencial da performance magnífica de Cate Blanchett. A construção do lado humano e multidimensional da personagem faz com que seja difícil ficar indiferente a esse longa-metragem. E esse tipo de discussão é que faz da arte, seja cinema ou música, algo tão fascinante.


Uma frase: – Lydia Tár: “Infelizmente, o arquiteto da sua alma parece ser a mídia social.”

Uma cena: Quando Lydia dá uma aula para estudantes na faculdade de Juilliard.

Uma curiosidade: Cate Blanchett teve que reaprender a tocar piano, aprendeu a falar alemão e a reger uma orquestra para o filme.


Tár

Direção: Todd Field
Roteiro: Todd Field
Elenco: Cate Blanchett, Noémie Merlant, Nina Hoss, Sophie Kauer, Julian Glover, Allan Corduner e Mark Strong
Gênero: Drama, Musical
Ano: 2022
Duração: 158 minutos

Ramon Prates

Analista de sistemas nascido em Salvador (BA) em 1980, mas atualmente morando em Brasília (DF). Cinema é sem dúvidas o meu hobby favorito. Assisto a filmes desde pequeno influenciado principalmente por meus pais e meu avô materno. Em seguida vem a música, principalmente rock e pop.

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