Crítica | Saturday Church (2017)

Crítica | Saturday Church (2017)

“A partir desta ficção é possível repensar a criação de pessoas LGBTs e propor uma perspectiva mais verossímil de lar”

O filme começa com um velório. Em um gramado, a bandeira dos Estados Unidos da América está estendida sobre o caixão, pessoas ao redor escutam os dizeres de um sacerdote. É momento da perda de um ente querido. Na cerimônia, pelas honrarias protocolares, vemos se tratar de um jovem militar que passou dessa pra melhor, membro de uma família negra. No decorrer do longa, descobrimos que o pai do protagonista Ulysses (Luka Kain) era esse militar. Porta-retrato emoldurado na mesa da sala mantém viva a memória. As causas permanecem incógnitas, mas tomamos conhecimento que de luto ficaram dois filhos ainda em fase de crescimento e uma jovem esposa.

Com o falecimento da figura patriarca, surge então uma nova personagem no âmbito familiar: tia Rose, interpretada por Regina Taylor, alguma parente agora não mais distante, a quem prometeu cuidar dos filhos do antigo soldado. Ela é uma fervorosa senhora católica, de preceitos morais rígidos para com as crianças. Amara (Margot Bingham), a mãe, parece que trabalha longe e visita periodicamente a prole. No início já alerta para os filhos que esse novo período não será fácil e que Rose está a auxiliando de maneira imensurável. Regina vive magistralmente essa tia vigia, em caracterização digna de ódio.

Ulysses, na trama, é uma criança viada: se interessa por roupas femininas, vasculha o armário da mãe e calça seus saltos altos vermelhos. A crise no lar, focada em seu drama, é gerada pela falta de diálogo no ambiente doméstico, o fazendo sempre internalizar sentimentos com receio da repressão. Não trava muitas conversas com nenhum dos parentes, seja a autoritária Rose que pegou o bonde andando e já estabelece novas ordens, ou com o irmão mais novo Abe (Jaylin Fletcher) que sempre o provoca, e até com a mãe que aparece nos fins de semana para ver os filhos. O bullying na escola é agravante da situação, fazendo com que ele tenha receio ao circular pelos corredores do colégio.

A cristandade, como antecipa o título, é um dilema para o protagonista. Enquanto os dogmas proferidos pelo padre e pela tia evocam resignação e condenam sua consciência pecadora, a salvação parece não chegar nunca. Ele sabe que não consegue viver de acordo com tais regras, que aquilo não lhe cabe, e parece suplicar um fim para árduo dever. Determinada cena, enquanto assiste à missa, vitrais de santos em sofrimento ilustram sua remissão religiosa, numa culpa incidente sobre seus pensamentos.

Certo dia, para fugir da tensão em casa, Ulysses vai para o “pier”, paisagem frequentemente associada a área da “zona” em filmes LGBTs, como Paris is Burning (1990), Gay Sex in the 70s (2005), e Pier Kids (2019). Conhece umas monas mais velhas, logo se enturma e passa a dar rolê com elas. Essas monas vivem outra realidade em comparação ao garoto, que acabou de sair da segurança do lar: algumas trabalham com prostituição e usam drogas ilícitas, criadas na vida que foram. Nesse momento, gradativamente, ele começa a se livrar das amarras sociais à sua volta e da opressão externa que abate seu corpo: como em um cabo de guerra, oscila entre atos de embate e recuo. Por exemplo, em retorno ao ambiente escolar, após ser insultado mais uma vez pelos bofes héteros no corredor, vira-se para trás e manda um debochado beijo – encerrando assim um ciclo de remissivas ofensas.

O núcleo do elenco que se torna o reduto de aconchego para Ulysses foi popularizado nas telas pela série Pose: Dijon (Indya Moore), Ebony (Michaela Jaé Rodriguez) e Heaven (Alexia Garcia). As personagens, cada uma à sua maneira, cumprem certo papel de guardiãs de Ulysses. O introduzem ao “meio” e às dificuldades da vida de uma LGBT sem deixar o cuidado de lado. Enquanto Heaven faz a acid bitch, emanando xoxo pelos comentários com certo alívio cômico, Ebony se assemelha a Blanca (personagem de Michaela na série de Ryan Murphy), uma outra mãe protetora e conselheira.

A cultura ballroom, por sua vez, é belíssimo pano de fundo para a inserção de Ulysses, uma promessa de legendary children, no meio das monas. Enquanto elas jantam na casa de caridade, algumas frequentantes treinam passos de vogue ao fundo do refeitório. A faixa “Dove”, de Pillar Point, conhecida pelo clipe onde a dançarina Kia Labeija performa pelas ruas de Bogotá, é a track que embala seus mundos secretos enquanto pratica passos de vogue pela rua ou no seu trabalho de coroinha. Inclusive Kia aparece em uma curta cena do filme com um par de dança.

A trajetória do protagonista é sempre mediada pelas relações que constrói e como isso o afeta. Ao mesmo tempo que o florescimento de sua identidade no mundo acontece, como o contato com o uso da maquiagem e um romance com o bofinho, o conflito dentro de casa se intensifica. O irmão mais novo não o obedece, e dedura para a tia sua conduta fora da norma. Por consequência, sua mãe fica sabendo desses desvios e o repreende, assim como Rose.

E aí vem o ponto de virada: certo dia compra um salto para caminhar em um baile, a tia descobre, apanha e é expulso de casa. Sai correndo pela porta e com a roupa do corpo vaga dias pelas ruas. Procura suas amigas, mas elas não se encontram no pier nem em outros lugares. Vive perrengues, dorme no abrigo, é roubado enquanto dorme, passa fome, faz sexo coagido por dinheiro com um cara que encontra na rua.

Ao voltar para a cidade em uma de suas habituais visitas, Amara não encontra o filho. Rose justifica seu castigo, e Amara, aturdida por mais uma perda, sai em incessante busca pelo garoto: vai até a delegacia, e não consegue dormir enquanto ele não retorna. Isso desenha um conflito entre ambas, na discordância da repreensão, motivo causador da ausência de Ulysses.

O filme trata-se de um musical de temática adolescente. Realizado em 2017, em uma amálgama de Glee (2009-2015) e Pose (2018), é um longa que flerta com o “água e açúcar”. Os arranjos instrumentais do piano dão melodia para o dramático das cenas e fornecem base para a sonoridade pop: refrões melódicos seja em canções dançantes ou melancólicas, Michaela soltando o vozeirão e até direito a dueto de casal, com seu novo e primeiríssimo affair Raymond (Marquis Rodriguez). Aliado a coreografia, que possui expressividade contemporânea de movimentação mais orgânica, o filme ganha impulso para cenários surrealistas nos números musicais – criando universos para o devir de suas personagens.

O padrão de atuação é o que estamos acostumados a ver, a transparência dos sentimentos, tudo entregue em narrativa blockbuster sem espaços para subjetividades espectatoriais.

A introspecção de Ulysses diante do mundo é marcada pela postura sempre retraída e olhar acanhado, que aos poucos se dissolve e encontra sublimação ao final do longa, enfaticamente no último take, com um retrato do protagonista abrindo um grande leque numa cerimônia ballroom.

A igreja do bairro é vista constante, seja pelo culto realizado aos sábados na congregação da vizinhança, seja pelo point onde Ulysses se encontra com as monas, também nomeado de Saturday Church.

Antes de tudo, é um filme que procura passar certa lição: uma história de descoberta, na libertação do preconceito e na expressão da identidade. Comum em tantas realidades domésticas – tomadas ou não pela excludente tradição cristã – é uma história de aceitação de corpos dissidentes no âmbito familiar, onde a rejeição só gera mais distância. A partir desta ficção é possível repensar a criação de pessoas LGBTs e propor uma perspectiva mais verossímil de lar, na abertura de diálogo e compreensão pela individualidade do próximo.


Uma frase: – Heaven: “Aposto que você roubou essa merda no K-Mart”
– Dijon: “Eu não uso K-Mart”

Uma cena: O velório.

Uma curiosidade: O filme foi todo gravado nas localidades de Nova York e Manhattan.


Saturday Church

Direção: Damon Cardasis
Roteiro: Damon Cardasis
Elenco: Luka Kain, Margot Bingham, Regina Taylor, Marquis Rodriguez, Michaela Jaé Rodriguez e Indya Moore
Gênero: Drama, Fantasia, Musical
Ano: 2017
Duração: 82 minutos

Noah Mancini

Bacharel Interdisciplinar em Artes e Design pela UFJF, MBA em Comunicação e Marketing pela Faculdade Descomplica e Mestrando em Cinema e Artes do Vídeo pela UNESPAR. Arte, crítica e deboche.

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