Uma análise do cinema novo e da ditadura militar através de Terra em Transe
O professor Felipe Gandolfi propôs para seus alunos do colégio E.E. Luís Bianconi a construção de textos científicos referentes à história do Brasil do século XX e a aluna Marina Motta escolheu como objeto de análise o cinema novo e a ditadura militar, analisando uma obra cultural (o filme Terra em Transe do diretor baiano Glauber Rocha) em relação à repressão e a censura
Por Marina Motta
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O filme “Terra em Transe”, dirigido por Glauber Rocha e lançado em 1967 em plena ditadura militar, é retratado em Eldorado, país latino-americano fictício que se encontra em grande tensão, lugar onde vemos Porfirio Diaz, político de direita, liderar um golpe de estado, tentando evitar a possibilidade de que Vieira, governador demagogo e mentiroso, ganhe a eleição.
Lançado no contexto da ditadura e do Cinema Novo, um movimento que reunia política com a realidade latino-americana através de uma lente artística e afiada com críticas, não é uma surpresa que Terra em Transe fosse um filme polêmico por natureza, que, não surpreendentemente, já foi proibido em território nacional poucos meses após seu lançamento, e só foi ser liberado tempos depois e relançado nos cinemas em 2006. E como qualquer obra de arte, ela carrega o contexto da época que foi criada, e isso não é nada diferente com essa produção, que dialoga diretamente com o contexto histórico e político de nosso país.
Em 1967, o Brasil tinha acabado de sofrer o golpe que pôs no poder os militares, mas que contou com o apoio da elite conservadora brasileira, dos meios de comunicação e de empresas (e governos) estrangeiros.
Para contextualizar esse filme, é necessário procurar referências em momentos da política do Brasil anteriores ao golpe. Principalmente, por entender que a ditadura militar foi uma conjunção política resultante do momento anterior que foi dominado pelo populismo, característica que é facilmente encontrada em Vieira, político aquele que pinta uma imagem de companheirismo e defensor dos ideais do povo, mas quando é eleito, não cumpre suas promessas.
Vieira representa o arquétipo do político “amigo do povo”, e seu paralelo com João Goulart, presidente que foi deposto na ditadura, é inevitável, mesmo que o personagem não seja baseado unicamente nele, mas sim nesse “fenômeno político” como um todo.
Assistimos Vieira prometer mudar o cenário de pobreza e injustiça que o país se encontra, sendo que é dolorosamente óbvio que esse não é o caso, fingindo dar atenção a voz do povo, que nem sequer é ouvida durante o filme. Vieira começa a se posicionar como porta-voz das causas mais nobres e heróicas, logo as mais difíceis, garantindo estar na defesa dos interesses dos camponeses, mesmo quando sua campanha inteira é financiada pelo latifúndio. A ilusão de um discurso amigável e altruísta é rapidamente manchada, já que no primeiro momento onde revolta popular é intensificada, a polícia é solta contra contra os camponeses.
“Felipe Vieira é o aliado-símbolo, o líder político que acaba por se mostrar frágil, covarde, populista, ineficiente. É o fascínio pelo papel desempenhado por João Goulart, o líder que não existiu.” (CAETANO, 1967)
Por outro lado, temos Porfírio Diaz, que tem um papel mais claro de antagonismo. Sendo a representação dos ideais da elite brasileira, a imagem de direita e anticomunista e um reflexo direto do colonialismo europeu, Diaz é um personagem que, muitas vezes, beira o fascismo.
“A tese de que Diaz seria a representação de todos os líderes de direita que estiveram no poder ganha força quando nos lembramos da cena que seria a primeira missa ocorrida no Brasil e quem aparece nela é Diaz, ao lado dos Portugueses. Então, ele é herdeiro dos portugueses politicamente, ele é a sucessão que ocorreu desde Cabral até o golpe militar, desde a época que os portugueses chegaram ao país e as nossas raízes políticas seriam, então, burguesas e portuguesas.” (SIMONETTI e ALVES, 2012)
Embora Vieira e Diaz sejam vistos como uma dicotomia, eles são, na verdade, muito parecidos.
Mesmo com a campanha de Vieira tendo uma imagem falsa de carisma e Diaz sendo uma
figura autoritária e assustadora, ambos tem as mesmas práticas e a mesma caracterização, já
que ambos são pertencentes a burguesia e tem laços com empresas estrangeiras.
Tanto que no longa existe uma empresa chamada Explint, que é uma representação dos
interesses do imperialismo estadunidense, e de um jeito ou de outro, manipula as ações tanto
de Diaz quanto de Vieira para o benefício próprio, que de certa forma, é um paralelo do papel
dos Estados Unidos na ditadura no Brasil, que foi um dos fatores que estimulou a tensão política
na era do governo de Goulart, que logo levaria ao início do golpe pouco tempo após seu
afastamento da presidência.
Outro personagem importante citar é o ambíguo poeta Paulo Martins, afinal, a história inteira
da Terra em Transe é contada através das memórias póstumas do mesmo.
Paulo representa a burguesia brasileira, não a mesma autoritária que Diaz representa, mas
sim a sua outra face; uma mais sofisticada e cultuada, a que vê uma estética na pobreza, mas
nunca se arriscaria a verdadeiramente conhecer o pobre.
Como o próprio Paulo diz: “Este é o povo: Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado”.
O personagem de Paulo é análogo não só à elite brasileira, mas também à europeia, que
constantemente mercantiliza mídias de países subdesenvolvidos sem o intuito de realmente
compreender a suas realidades em si, mas em consumir um cenário entendido como irrealmente
trágico e glamorizado. No manifesto “Uma Estética da Fome” – o mais importante e influente
manifesto do cinema brasileiro – publicado pelo próprio Glauber Rocha em 1965, o assunto é
comentado;
“Assim, enquanto a América Latina lamenta suas misérias gerais, o interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria, não como um sintoma trágico, mas apenas como um dado formal em seu campo de interesse. Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino. […] Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subdesenvolvido só o interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do primitivismo; e este primitivismo se apresenta híbrido, disfarçado sob as tardias heranças do mundo civilizado, heranças mal compreendidas porque impostas pelo condicionamento colonialista.“
“A fome latina, por isto, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida. […] Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entendeu. Para o europeu, é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro, é uma vergonha nacional. Ele não come mas tem vergonha de dizer isto: e, sobretudo, não sabe de onde vem esta fome.”
Inicialmente, somos apresentados a essa ideia de um intelectual esquerdista de classe média
alta, que interage com as pessoas e o mundo de forma romântica, expressando seus ideais
elevados como se estivesse ditando poesia, que fala da dor do povo, mas não a sente e nem a
conhece, que fala sobre a procura pela cura da miséria de sua alma, mas não percebe que a
miséria, antes de ser da alma, é principalmente material e generalizada.
Vemos então esse personagem, que ao ter mais contato com o povo que ele tanto romantiza,
começar a ter uma postura pretensiosa, errática e ainda mais cega sobre oque acontece ao seu
redor. Ao mesmo tempo que ele se nega a se associar com os valores que Diaz reflete, ele
também acaba se portando com cada vez mais violência e autoridade à população no instante
que as suas intenções e a de Vieira são questionadas.
Nesse cenário de extrema tensão política, a atmosfera beira a insanidade. Tanto na postura
bizarra e ameaçadora que Diaz simboliza, quanto a campanha do Vieira, que intercala
freneticamente de momentos alto-astral, com uma alegria efêmera e danças e músicas que logo
são interrompidas ao som de tiros e violência gratuita, e tudo isso vai andar em direção ao que
vimos logo no início do filme; o golpe de estado.
Terra em Transe é, em sua essência, uma alegoria simbólica das problemáticas sociopolíticas
brasileiras, que é trazida para nós em forma de loucura audiovisual repleta de cenas quase
teatrais e personagens que representam um grande peso dos conflitos que conhecemos muito
bem.
Mesmo com alguns problemas técnicos, como o ritmo e montagem de acontecimentos
confusa e levemente estranha, principalmente no começo, onde é difícil entender que a cena
onde Paulo é morto a tiros se passa depois dos eventos de Eldorado, que só iria ser apresentada
mais tarde no filme, arrisco a dizer que Terra em Transe é um dos melhores filmes nacionais já
feitos e uma obra atemporal, que nos serve de ferramenta tanto para entender conflitos da época
passada quanto os atuais.
O longa-metragem, tendo como “pano de fundo” todo o contexto da ditadura militar vivida
nessa época, age como, em primeiro impacto, um reflexo direto de não só os acontecimentos
que nosso próprio país vivencia diante da desigualdade, pobreza, violência, e da censura, mas
também de um reflexo da América Latina como um todo.
Filme excelente, nota 4,5/5.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
SIMONETTI, Maria e ALVES, Gabriella. Terra em Transe e a Política em seu
contexto histórico. Disponível em:
http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sudeste2012/resumos/R33-0823-1.pdf
Acessado em: 18 ago. 2022
CAETANO, Daniel. Terra em Transe. Disponível em:
http://www.contracampo.com.br/27/terraemtranse.htm Acessado em: 24 ago. 2022
CINEMA NA DITADURA. Disponível em:< https://memoriasdaditadura.org.br/cinema/>
Acessado em: 9 ago. 2022
ROCHA, Glauber. Uma Estética da Fome, Revista Civilização Brasileira, ano I, n. 3,
julho 1965, pp. 165-170.
TRANSE, Terra em; Direção: Glauber Rocha. Rio de Janeiro. Difilm, 1967, 115 minutos, p&b
Orgulho demais de ver o trabalho de meus alunos ganhando espaço e voz!
Obrigado novamente a todos da Pocilga por proporcionar a abertura de espaço e voz para a Marina!
Valeu <3
Não é todo dia que a Pocilga vê um texto tão embasado assim.
Excelente análise, de fato é um filme que continua muito atual — infelizmente.
GLAUBER
simplesmente perfeito, o melhor artigo feito pela maior, a Marina, uma escrita impecável, tá lindo!!!!!!
simplesmente perfeito, melhor artigo feito pela maior, a Marina, escrita impecável, tá lindo!!!!!