Crítica | Destacamento Blood (Da 5 Bloods, 2020)

Crítica | Destacamento Blood (Da 5 Bloods, 2020)

Vidas Negras Importam!

2020 será lembrado como o ano em que, em meio a uma das maiores pandemias da história, o movimento Black Lives Matter ganhou o mundo. Esse contexto não é apenas simbólico como também sintomático do espaço que os corpos negros ocupam na construção do mundo capitalista ocidental. É também tão simbólico quanto sintomático que um dos capítulos mais trágicos da história militar contemporânea, a famigerada guerra do Vietnã, sirva de recorte para reforçar a necessária discussão que o movimento BLM busca pautar.

Entretanto, se há algo que ultrapassa qualquer aspecto simbólico ou sintomático, e se condensa em um arrebatador movimento poético (com toda a força dialética e especificidade que a poesia tinha para Aristóteles), é sem dúvida o fato de estarmos diante de uma das melhores e mais importantes obras de um artista do raro quilate de Spike Lee como a narrativa que melhor rima, repercute e representa esse momento que experimentamos na história da humanidade e do povo negro. Seu último “joint” (que é como Lee prefere se referir a seus trabalhos) “Destacamento Blood” (Da 5 Bloods, 2020), longa metragem original da Netflix é a obra que sintetiza o espírito de nosso tempo.

Há alguns dias testemunhei um debate acerca de qual seria a obra mais representativa dos últimos tempos, considerando os protestos em torno do cruel assassinato de George Floyd, um homem negro estadunidense, perpetrado – em plena luz do dia e com um indisfarçado orgulho – por policiais brancos e pelo sistema policial racista daquele país. O debate girava em torno de Watchmen de Damon Lidelof de um lado, e Olhos que condenam, de Ava DuVernay de outro como obra capaz de assumir essa representatividade maior, como se isso fosse possível. No momento, achei uma discussão travada a partir de premissas não claramente estabelecidas e que ignoravam certos aspectos específicos de cada obra o que, a meu ver, dificultavam muito a comparação de ambas. A meu entender eram ambas significativamente representativas e em conjunto serviam para reforçar esse zeitgeist (olha eu citando Hegel de novo) que serve de pano de fundo para esse texto e ambas as obras. O fato é que, após assistir “Destacamento Blood” eu tive a sensação de que essa discussão estava sem dúvida, ao menos de minha perspectiva, decididamente superada: o último “joint” de Spike Lee, em todos os níveis possíveis de se imaginar, tanto estético, narrativo, quanto metanarrativo, político e social é indubitavelmente a obra mais representativa desse momento em que vivemos.

Aliás, cabe chamar a atenção de que, mesmo se a história não tivesse se apresentando com tamanho vigor e clareza em sua força desnuda para, enfim, apresentar à humanidade aquilo que o povo negro sabe já há alguns séculos, a obra de Spike Lee não seria menos espetacular. É impossível separar Lee do contexto social e político no qual ele sempre se colocou de forma bastante clara, decidida e objetiva: ele é ativista e artista, a um só tempo, e é bom que seja assim. Porém, em “Destacamento Blood“, de perspectiva eminentemente estética, é evidente que estamos diante de um dos grandes mestres do cinema com domínio absoluto do meio, suas técnicas, tecnologias e narrativa. Em suma, sem exageros, além de ser possivelmente um dos melhores filmes do catálogo de originais da Netflix (ao lado de obras primas como “Roma” e “O Irlandês”), e um dos melhores filmes do ano, “Destacamento Blood” é talvez a melhor obra de Spike Lee até hoje e, sem dúvida, um testamento feito em vida de sua vida e obra.

Dessa mencionada perspectiva estética, é possível destacar como Lee recorre a filtros, mudanças de razão de aspecto, fotografia, enquadramento, para a todo momento nos lançar de um ponto a outro de sua mensagem política e de sua história; tudo isso feito dialogando com inúmeros outros elementos da própria história do cinema, ressaltando como a sétima arte sempre se sobrepôs e se contrapôs à realidade social e política ao longo do século XX e, particularmente, no que tange à Guerra do Vietnã. Lee também sabe, como poucos, explorar a sarjeta de uma narrativa, e assim cortar os excessos, deixando para que ocorra fora da tela aquilo que sabemos que irá acontecer, mantendo em quadro apenas aquilo que importa.

Mais ainda, a maestria de Spike Lee como diretor fica bastante evidente quando nos damos conta da dificuldade que temos ao definir “Destacamento Blood” após a experiência. Como toda grande obra, o filme não cabe em uma única categoria: não é apenas um filme de guerra, não é apenas um drama racial, não é apenas um “heist movie”, não é apenas um melodrama geracional; é tudo isso e muito mais. E é simplesmente melhor que tudo isso junto. Mesmo aquilo que parece, num primeiro momento, estar em excesso ou expositivo demais, visto com mais cuidado, dentro do contexto da narrativa, do próprio conjunto da obra de Lee e à luz do pano histórico que se desfralda ao fundo, se revela precisamente adequado.

Lee, porém, não é único responsável por essa obra de arte. O cinema, como se sabe, é uma obra colaborativa. A já mencionada cinematografia de Newton Thomas Sigel, experiente em filmar cenas de guerra, se soma à inspirada trilha de Terence Blanchard que presta o devido respeito e reverência à Marvin Gaye, para recriar o tom da Guerra do Vietnã e da década de 70. O roteiro de Lee, ao lado de Paul De Meo, Kevin Willmott e Danny Bilson, desenvolve muito bem o enredo proposto sem deixar de recorrer a excelentes diálogos que servem para o diretor e ativista sublinhar sua mensagem política em alto e bom tom. Mas em matéria de trabalho conjunto, o que salta aos olhos mesmo é a excelente performance do elenco.

Cada um dos atores principais (os 5 Blood do título em inglês) executa com perfeição sua função. O destaque, claro, fica para Chadwick Boseman, Clarke Peters e Delroy Lindo. Lindo, aliás, é um capítulo à parte até tratarei a seguir. Boseman, o já eterno T’Challa, incorpora como poucos a presença mítica de um herói que, como o personagem de Peters bem define, serve um pouco como Malcolm X, um pouco como Martin Luther King, para seus irmãos do destacamento Blood. “Stormin” Norman é, em certo sentido, o McGuffin da trama, embora não seja exatamente sua força motriz. Já o personagem de Peters, Otis, embora ocupe o espaço trivial do membro racional do bando, ganha força pelo sempre ótimo trabalho do ator. Otis é, aliás, muito mais importante por servir de contraponto e, efetivamente, escada para o personagem de Delroy Lindo.

Em tempo, cabe ressaltar, como prometido a avassaladora performance de Delroy Lindo. É seu personagem, o anti-herói Paul, a verdadeira força motriz e a essência moral da obra de Spike Lee. O controverso personagem é a síntese de todo o sofrimento do homem negro na sociedade estadunidense contemporânea e durante e depois a Guerra do Vietnã. Seu sofrimento, desespero mal-contido e pura e evidente dor é arregaçado diante de nossos olhos por cada poro e gota de suor de um ator no ápice de sua arte. Não há um momento sequer em que Lindo não domine a cena e determine – ao lado da câmera de Lee que não quer ou não consegue se afastar dele -, com seu conflituoso e contraditório Paul, o ritmo da narrativa. Do início ao fim é um absoluto deleite ver um ator do tamanho de Lindo receber mais uma vez, enfim, um papel à sua altura. E Lindo abraça, como poucos atores abraçariam, esse presente de Lee para ele, entregando uma performance sem dúvida para ficar para a história. Assim como deve também entrar para história essa obra-prima de Spike Lee.


Uma frase: “Depois de estar em uma guerra, você entende que ela nunca termina realmente”.

Uma cena: Paul se separa do grupo, tomado pelo desespero e por paranóia. A cena é tão forte que sentimos toda a dor da performance de Delroy Lindo, mesmo com Spike Lee filmando toda a sequência focando nas costas do personagem.

Uma curiosidade: O roteiro inicial, escrito por Bilson e DeMeo, se chamaria “The Last Tour” e abordaria o retorno de 4 veteranos brancos ao Vietnã. Com Oliver Stone cotado para dirigir, antes de se afastar do projeto. Procurando por um diretor, o produtor Lloyd Levin, ao saber que o “O Tesouro de Sierra Madre” era o filme preferido de Spike Lee, decidiu oferecer ‘The Last Tour’ a ele, dada as semelhanças entre as tramas. Lee de fato gostou da ideia, porém convidou seu colaborador habitual Kevin Willmott. Ambos reescreveram o roteiro, colocando soldados negros como os protagonistas, transformando, efetivamente, “Da 5 Blood” na obra que ela é.


Destacamento Blood (Da 5 Bloods)

Direção: Spike Lee
Roteiro:
Danny Bilson, Paul De Meo, Spike Lee e Kevin Willmott
Elenco: Delroy Lindo, Jonathan Majors, Clarke Peters, Norm Lewis, Isiah Whitlock Jr., Mélanie Thierry, Paul Walter Hauser, Jasper Pääkkönen, Jean Reno e Chadwick Boseman
Gênero: Drama, Guerra
Ano: 2020
Duração: 155 minutos

Mário Bastos

Quadrinista e escritor frustrado (como vocês bem sabem esses são os "melhores" críticos). Amante de histórias de ficção histórica, ficção científica e fantasia, gostaria de escrever como Neil Gaiman, Grant Morrison, Bernard Cornwell ou Alan Moore, mas tudo que consegue fazer mesmo é mestrar RPG para seus amigos nerds há mais de vinte anos. Nas horas vagas é filósofo e professor.

4 comentários sobre “Crítica | Destacamento Blood (Da 5 Bloods, 2020)

  1. Assisti ontem!

    O filme tem 2h34min de duração, o que faz com que a história se estenda um pouco além do necessário. Porém, “Destacamento Blood” faz uma ponte muito bacana entre figuras históricas marcantes da cultura negra norte-americana com as situações as quais os negros foram sendo submetidos ao longo dos tempos – uma discussão importante em tempos de “Black Lives Matter”.

    Provavelmente, este é um filme que figurará nas listas da premiações da temporada 2020-2021. Delroy Lindo, com uma atuação bem consistente, pode ser um concorrente forte ao Oscar 2021 de Melhor Ator Coadjuvante.

    1. Kamila, primeiramente obrigado pela, como aliás é de sua praxe, excelente contribuição.

      Assim como você, num primeiro momento a duração do filme de fato me pareceu exagerada – como ocorre normalmente com originais da Netflix que não têm as mesmas preocupações comerciais que as produções feitas para as salas de cinema costumam ter -; porém, depois, ponderando, me pareceu que, considerando que em Spike Lee cinema e ativismo se confundem, e a importância da temática – muito realçada pelos eventos da atualidade -, de fato tudo que ali parece excesso cumpre uma função, seja ela narrativa ou meta-narrativa.

      É um daqueles filmes que vale a pena rever e discutir.

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