Crítica | O Primeiro Homem (First Man)

Crítica | O Primeiro Homem (First Man)

Em O Primeiro Homem (First Man, 2018) o diretor Damien Chazelle (Whiplash, La-la Land) nos conduz em um duro e intenso cortejo fúnebre, rumo à eternidade, e diretamente do féretro.

Embora “O Primeiro Homem” conte a história de Neil Armstrong (Ryan Gosling), o primeiro homem a pisar na lua, em 1969, a narrativa construída por Chazelle não é sobre isso. De forma elegante e acertada ele foge do óbvio e decide por se conter, em uma belíssima expressão da subjetividade de seu protagonista, onde outros explorariam espaços. Nesse simples gesto ele define sua obra.

Trata-se de uma obra sobre morte, luto, e eternidade contada a partir de uma dura, intensa e asfixiante tensão entre a fragilidade humana e sua capacidade de ir além. Passos pequenos que são apenas isso mesmo: passos pequenos; sem qualquer grandiloquência ou certeza, mas que, ao mesmo e paradoxalmente, nos definem enquanto humanidade. Se o homem é frágil e transitório, a humanidade apenas se justifica da perspectiva da eternidade. E é dessa trágica contradição que a história contada por Chazelle se alimenta.

As principais ferramentas de Chazelle para realizar esse feito são duas: a cinematografia e a atuação de seus atores. Os outros elementos, sem dúvida, ajudam a compor um todo coeso e harmônico, mas aqueles dois falam mais alto.

O Primeiro Homem, foto

Da perspectiva da cinematografia Chazelle preenche a tela com escolhas inteligentes, que ressaltam seu conhecimento da narrativa que ele se propõe a desenvolver. É bem evidente sua opção por planos fechados e um uso restrito do campo. Essa escolha é ressaltada pela muito competente direção de fotografia de Linus Sandgren, que, particularmente na iluminação, se destaca. A luz do filme não apenas reforça o tom da narrativa como também o espaço subjetivo do protagonista e, ao mesmo tempo, a todo momento nos coloca envolto em trevas similares ao do vazio do espaço. O mesmo efeito também nos remete imediatamente a uma ótima representação do ambiente da década de 60.

Entretanto, o maior feito da cinematografia de “O Primeiro Homem” é justamente contar o mais importante capítulo da corrida espacial, de uma perspectiva fechada e claustrofóbica. Como sugerido acima, Chazelle, desde o primeiro frame, nos coloca dentro do espaço do piloto e astronauta. Não se trata de uma mera opção de perspectiva de câmera por razões estilísticas meramente funcionais. Nessa escolha reside o cerne da obra da narrativa de Chazelle. O simbolismo é evidente: Neil Armstrong durante todo o filme está confinado a um ambiente funesto. Todas as suas viagens são mostradas como se fossem o olhar de um cadáver de dentro de uma urna funerária. E é justamente isso que constrói a lenta e dolorosa tensão que o diretor não deixa se perder em um minuto sequer da projeção.

A trajetória de Armstrong, afinal, não é mostrada como a de um homem que heroicamente foi, literalmente, onde nenhum outro jamais fora. É, por outro lado, uma trajetória de uma tentativa desesperada de superação de um luto que, efetivamente, o lançou no mundo dos mortos. Buscar a lua é buscar seu descanso final que, inadvertidamente, implica em se afundar em uma não desejada eternidade. Nesse aspecto é que o trabalho de atores é fundamental. Ele se resume essencialmente a duas atuações, Ryan Gosling como Neil Armstrong e Claire Foy como sua esposa Janet. É da dinâmica desses dois que a película ganha vida.

O Primeiro Homem, foto

Ryan Gosling realiza aqui o que pode ser um dos seus melhores trabalhos. O personagem criado e interpretado por ele está em plena consonância com a forma do filme e se apresenta, além disso, como uma ferramenta viva daquela. Em cada gesto e expressão contido, em cada olhar que se desloca entre um suave e doloroso desespero, divagações e uma busca obsessiva por precisão, aprendemos algo novo sobre aquele ser humano complexo que, em momento algum, será desumanizado como um herói mítico. Por outro lado, os elementos de cena em volta de Neil Armstrong não deixam de expor sua obsessão por precisão na busca por controle sobre o desconhecido e inefável: são instrumentos de cabine, cadernos com anotações, seu indefectível relógio de pulso, etc.

Claire Foy forma um excelente contraponto a seu colega de tela. Embora, em alguns momentos, seja difícil não perceber alguns cacoetes de sua interpretação da jovem Rainha Elizabeth II de The Crown, ainda assim sua atuação é impressionante. Através de Janet o luto do protagonista é amplificado, pois é graças a ela que percebemos como aquela narrativa afeta toda a família. A dor também rasga o semblante de Foy ao longo de toda a película, bem como a triste constatação de que ela e toda sua família são apenas passageiros no féretro que seu marido escolheu para cumprir sua trajetória.

Haveria muito mais para falar sobre “O Primeiro Homem”, e este é, sem dúvida, um filme que merece ser visto e revisto. O que parece ser interessante destacar aqui, contudo, é como Chazelle constrói os atos de sua narrativa, inserindo progressivamente elementos de cena e cenário, que vão nos envolvendo em um crescendo lento e asfixiante de tensão. O uso da água, até o primeiro ato, como criação de um espaço de segurança para o protagonista nos ajuda a preservar algum senso de alívio, ainda que sem perder a melancolia. Quando o fogo, finalmente, no terceiro e último ato é introduzido, o terror e o perigo se instauram de forma subreptícia e constante. A morte deixa de ser um elemento que paira no espaço e se impõe de dentro para fora.

Ao final experimentamos uma jornada dolorosa e extenuante, que nos consome do início ao fim. Porém, nos entrega com uma sensação profundamente satisfatória de termos testemunhado uma obra de destaque da sétima arte que narra com originalidade, sutileza, inteligência e beleza a história de um dos personagens mais importantes da história do século XX.


Uma frase: – Neil Armstrong: “Bom… talvez você não devesse.” (Neil Armstrong esclarece a Buzz Aldrin que, talvez, às vezes, se você é babaca, é melhor ficar calado.)

Uma cena: Neil Armstrong explica para seus filhos que vai à Lua.

Uma curiosidade: Tem gente na Pocilga que jura de pé junto que esse filme narra uma história de pura ficção, e que é um erro absurdo Stanley Kubrick não aparecer na história.


O Primeiro Homem, cartazO Primeiro Homem (First Man)

Direção: Damien Chazelle
Roteiro:
Josh Singer
Elenco: Ryan Gosling, Claire Foy, Jason Clarke, Kyle Chandler, Corey Stoll, Ciarán Hinds, Christopher Abbott, Patrick Fugit e Lukas Haas
Gênero: Biografia, Drama, História
Ano: 2018
Duração: 141 minutos

Mário Bastos

Quadrinista e escritor frustrado (como vocês bem sabem esses são os "melhores" críticos). Amante de histórias de ficção histórica, ficção científica e fantasia, gostaria de escrever como Neil Gaiman, Grant Morrison, Bernard Cornwell ou Alan Moore, mas tudo que consegue fazer mesmo é mestrar RPG para seus amigos nerds há mais de vinte anos. Nas horas vagas é filósofo e professor.

10 comentários sobre “Crítica | O Primeiro Homem (First Man)

    1. Kamila, obrigado.

      Comentários como o seu são muito importantes para nós que escrevemos por amor ao cinema.

      Depois coloca aqui o link da outra critica que você mencionou. Fiquei curioso.

      Abraços.

        1. Obrigado Kamila.

          De fato é uma visão bem distinta da minha. Achei a crítica um pouco injusta com o todo cinematográfico que o filme representa. Acho estranho cobrar grandiosidade de um filme – e da interpretação de Ryan Gosling – que busca justamente fugir desse lugar comum de filmes do gênero.

          Mas, enfim, cada um tem sua opinião.

          E você, que achou do filme? Já assistiu?

  1. Olá Mário Bastos!
    Agradeço pela resenha!
    Neste trecho, onde vc diz:
    “Se o homem é frágil e transitório, a humanidade apenas se justifica da perspectiva da eternidade. ”
    Se trataria de uma visão pessoal sua, ou expõe uma argumentação utilizada no filme? Poderia acrescentar alguma frase para que eu consiga entender a sentença melhor? Obrigadíssimo!

    1. Oi Ramon! Puxa, obrigado por ter gostado.

      E obrigado por ter me dado a honra de aprofundar essa reflexão.

      Trata-se de uma reflexão minha mesmo. Não tem isso no filme, confesso. Trata-se de uma impressão que o filme me passou ao assisti-lo.

      O que quis dizer mais ou é que, fosse imortal, o homem seria um ser que não se sentiria provocado a buscar desesperadamente sua perpetuação através de suas obras. Sabe aquele negócio de deixar sua marca no mundo? Nesse sentido a mortalidade e a engenhosidade andam juntas. E como o homem – segundo Marx – se define através de sua atividade vital livre, portanto suas obras seu trabalho, e apenas enquanto parte da humanidade (nesse sentido entendida como um todo social); então, nesse sentido, não fosse a perspectiva da finitude, não fosse a transitoriedade concreta do corpo humano e sua fragilidade em relação ao tempo, enfim, não fosse nossa mortalidade sequer seríamos homens. Por isso a perspectiva de eternidade é tão importante. Pois a busca por ela que nos faz reconhecer nossa mortalidade, que impulsiona a engenhosidade. Uma curiosa relação dialética.

      Espero que eu tenha me feito entender.

      Abraços e volte sempre a comentar!

  2. Mário, sou fã das suas críticas exatamente porque você faz reflexões filosóficas interessantes sobre o que é construído no roteiro do filme e como essas mensagens casam com a direção de vídeo, a fotografia, etc.

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