Crítica | Animais Noturnos (Nocturnal Animals)
Tal é a natureza da vida. A vida nos consome, nos mastiga e nos regurgita, nos engole violentamente e nos vomita outra vez. Algumas vezes buscamos segurança, em pessoas, em momentos, fragmentos de imaginação. Não há, porém, espaços seguros. Algumas vezes, a bem da verdade, nem mesmo nas eventuais – ou quase sempre – geladas cercanias de nossa imaginação.
Tal é a natureza do mundo. Noturno e imerso em violência. Desde o estampido rouco de nosso nascimento, somos recebidos pela violência. E ainda que isso possa não nos determinar enquanto seres, as marcas são sentidas profundamente naquilo que nos constitui. Nos sacar do abraço hipnótico e tanático da escuridão é, sem sombra de dúvidas, a mais profunda das violências. E depois nos arremessar de volta a esse abraço, mais brutal ainda. Isso depois que a vida nos consome, nos mastiga, nos regurgita.
Tal é a natureza das trevas. Aquele espaço frio, vazio e ubíquo em sua insegurança. Aquele lugar onde somos o que éramos antes da violência da vida. Talvez, seres constituídos pela própria linguagem da selvageria também. Porém outro tipo de violência. Uma forma pura, talvez. Alguma forma de vingança, perante a qual toda forma de beleza esmaece. Principalmente a beleza fria e estóica da vida e do mundo para o qual somos brutalmente alçados. Aquele que nos consome. Que se constitui de puro consumo e, assim sendo, não se constitui de nada. Ou, talvez, o nada seja tudo do que algo possa mesmo se constituir.
Afinal, somos seres de sonhos, de morte, de imaginação. E tudo que somos nada mais do que pura invenção. Fragmentos de imaginação. Pedaços de mentira ordenados de forma aparentemente coesa. Haveria para nós, assim, coisa mais pura do que a violência, a morte a vingança? Não seria esse o retorno ideal às trevas? À escuridão do útero que antecede a morte? Haveria outra coisa mais genuína e verdadeira capaz de preencher – ou de alimentar a ilusória expectativa de talvez preencher – o espaço vazio que se interpõe entre nós e tudo o mais?
Tal é a natureza da morte: aquilo que construímos com os pedaços estilhaçados de nossos sonhos; os fragmentos de nossa imaginação. Pois tudo é sonhado, imaginado, vivido, consumido, regurgitado, vomitado. Tal é a natureza da vida, das trevas, do sonhar e também, porque não, da vingança. Somos seres de pura vingança e violência. E nada mais além disso. Nada além daquilo que criamos para aplacar o espaço vazio que nos preenche desde nosso primeiro grito de protesto perante a vida. Nesse interstício vivemos, como animais, até retornarmos à noite.
Como pássaros perdidos nos espatifamos, simplesmente, em algum obstáculo de vidro, invisível durante um vôo noturno.
Uma frase: “Susan, aprecie o absurdo de nosso mundo. Acredite em mim: nosso mundo é muito menos doloroso do que o mundo real.”
Uma curiosidade: O filme é baseado no livro “Tony and Susan” do autor Austin Wright. “Animais Noturnos” é, também na obra original, o nome do livro que o personagem Tony está escrevendo.
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Animais Noturnos (Nocturnal Animals)
Direção: Tom Ford
Roteiro: Tom Ford (Adaptado da Novela “Tony and Susan”, de Austin Wright)
Elenco: Jake Gyllenhaal, Amy Adams, Isla Fisher, Michael Shannon, Aaron Taylor-Johnson, Armie Hammer, Michal Sheen, Jena Malone e Laura Linney
Gênero: Thriller, Drama
Ano: 2016
Duração: 116 minutos.
Graus de KB: 1³! (E que 1³!) Laura Linney e Kevin Bacon estiveram juntos no espetacular Sobre Meninos e Lobos (2003), talvez o melhor filme de Clint Eastwood!; Michael Sheen esteve com Kevin Bacon no excelente Frost/Nixon (2008); Michael Shannon esteve com Kevin Bacon no também ótimo O Lenhador (2004);
É bom quando você acaba de assistir um filme e fica se perguntando o que o diretor quis dizer com ele. Qual o significado, ou melhor, qual a nossa interpretação diante dele. Essa é uma das grandes graças das artes em geral. Adorei sua reflexão pós filme e sua leitura sem falar necessariamente e diretamente sobre ele. Parabéns!
Que bom que você gostou. Pois é, são poucos os filmes do circuito mainstream que nos provocam reflexões assim. E esse o faz com um apuro técnico e um trabalho de atores, roteiro e personagens que é raro.
mas isso não é uma crítica e sim uma crônica!
impulsionar reflexões acerca da nossa existência talvez seja o maior trunfo deste filme inesquecível.