Review | Doctor Who 9×11: Heaven Sent

Review | Doctor Who 9×11: Heaven Sent

Sísifo, os Irmãos Grimm e Shakespeare – mais uma vez – reúnem-se mais uma vez para auxiliar Steven Moffat a contar um conto de Doctor Who que é do tamanho da eternidade.

Os comentários a seguir do 11º episódio da 9ª temporada de Doctor Who contém spoilers.

Alas, poor Doctor

Você sabe que superou de uma vez por todas um antigo relacionamento quando olha para o rosto de seu parceiro atual, e seu antigo parceira não passa de uma memória fugidia. Uma sombra distante da qual você sequer consegue lembrar bem o motivo dela ter estado ao seu lado.

Há algum tempo eu repito na nota da genialidade e talento de Peter Capaldi. E isso é inquestionável haja vista sua competência como ator. Mas por mais que ele fosse bem, eu não conseguia deixar de fazer a todo momento comparações com Matt Smith ou mesmo David Tennant. O fato dele ser bom, em outras palavras, não fazia dele o Doutor. Eu insistia, como que afirmando para mim mesmo, que ele talvez fosse o que melhor encarnou o Doutor até hoje, desde o retorno da série em 2005, mas isso soava muito mais como uma forma de convencer a mim mesmo.

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É como, já fazendo uma analogia com o questionamento central do episódio e da temporada, se precisássemos de um segundo de eternidade para superar aquilo que perdemos. Pois bem, depois de 2 bilhões de anos, nada mais razoável que um segundo de eternidade se passe, e você enfim esqueça aquilo que passou.

Mas claro que não é apenas o tempo que determina essa superação. É preciso algo mais. No caso de Doctor Who, é preciso de uma performance apropriada a marcar seu espaço na eternidade.

Bem, nada mais justo que um episódio no qual o Doutor é o único personagem, e em que Peter Capaldi brilha praticamente sozinho naquele que é essencialmente talvez o mais espetacular monólogo já escrito para Doctor Who. Sem dúvida talvez o melhor que já vi na TV. Um que se sustenta talvez no mais famoso monólogo já escrito na história da dramaturgia e que, não por acaso, envolve também crânios, fantasmas e questionamentos perante a finitude da vida a e a eternidade de nossos pecados.

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A performance de Capaldi não é apenas genial. Ela é uma das melhores performances com a qual um Doutor já foi capaz de presentear sua audiência. Após assistir Heaven Sent, se você é um Whovian de longa data, como eu, você não terá dúvidas de Peter Capaldi é o melhor Doutor que jamais existiu… pelo menos até mais uma eternidade se transcorrer, o próximo vier para ocupar seu lugar, como em qualquer relacionamento.

O mito de Sísifo

Nada simboliza mais a eternidade do que a dor da perda. Nada melhor que isso para mostrar o imenso e profundo abismo de desespero que deve ser a existência de um Time Lord. Como o Doutor afirmara em outro momento a verdadeira dádiva é a morte. Eternidade é uma dura e cruel prisão na qual somos obrigado a experimentar a dor da perda de maneira sucessiva e ininterrupta. A mais cruel de todas as prisões, da qual não há escapatória. Como fugir, afinal, da eternidade, se a fuga definitiva, a morte, lhe é inexoravelmente negada. É possível ser mais cruel?

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Sim, é possível, e Steven Moffat demonstrou uma criatividade fabulosamente sádica ao imaginá-la.

Pior do que negar a fuga pela morte, é fazer da morte um mecanismo da prisão. Repetida infinitesimalmente e sempre trazendo-lhe de volta para o lugar onde residem seus maiores pesadelos.

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A ideia, é claro, não é nova. Trata-se do mito de Sísifo, um dos mais interessantes da mitologia, e que inspirou diversos grandes mestres da literatura como Dante e Camus. Mas a forma com que Moffat a utiliza dentro da estrutura de Doctor Who e do arco narrativo dessa temporada – que, já falamos diversas vezes, tem como foco principal a morte – é simplesmente espetacular. Desculpe, o excesso de adjetivos, mas é justamente esse tipo de efeito que um episódio como Heaven Sent causa em você.

É como se no mito de Sísifo a pedra rolasse sobre ele, esmagasse todos os seus ossos e o lançasse de volta para a base da montanha, o obrigando a sempre recompor seu corpo alquebrado para continuar seu trabalho sabendo que sempre que alcançasse o cume da montanha seu corpo seria esfacelado mais uma vez. É como se você fosse obrigado a cavar sua própria sepultura para encontrar o caminho para sua tumba e depois de morrer, retornasse para cavá-la mais uma vez.

Uma história sobre a eternidade

Heaven Sent é ainda uma história sobre a eternidade. Algo nada incomum em se tratando de Doctor Who, mas que dessa vez é abordada com uma camada a mais de estilo e elegância. Ao utilizar o conto dos Irmãos Grimm, The Shepherd Boy Moffat consegue extrair a partir dali a história perfeita para encerrar a temporada e simbolizar a absurda tenacidade – melhor dizer teimosia – do Doutor. Se há uma dimensão da eternidade caracterizada da maneira apropriada, não resta dúvida de que a mesma está presente nesse episódio de Doctor Who.

De alguma forma, descobrimos no episódio, Gallifrey conseguiu arregimentar o apoio de Ashildr para aprisionar o Doutor em seu próprio Disco de Confissão. Disco esse que apenas deveria ser aberto com a sua morte. E Doutor morre. Sim. Incontáveis vezes.

Seu Disco de Confissão é seu inferno particular. Um inferno criado pelo seu pior e mais temido oponente: ele mesmo. Um lugar onde seu maior medo o persegue e o força a encontrar a redenção confessando seus pecados. Ou menos é isso que os Time Lords de Gallifrey esperam ao aprisionar o Doutor ali. Descobrir o mistério por trás do Híbrido. É satisfatório perceber quando um arco de história consegue se fechar em si mesmo.

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Mas o Doutor não é do tipo que vê o copo meio vazio. Quer dizer, talvez sozinho ele seja desse tipo. Mas em sua mente, em sua storm room, diante da plateia apropriada, o Doutor sempre busca por respostas para resolver um quebra-cabeça. Isso é irresistível para ele. E é a necessidade atávica de se resolver esse quebra-cabeça que o impulsiona a uma mudança de perspectivas. Inferno, afinal, é apenas o Paraíso dos homens maus. E o Doutor nunca foi bom. Em seu íntimo ele sabe disso, e assim, ele sabe que está exatamente no lugar onde ele deve estar. E isso o deixa em uma posição estranhamente confortável para planejar.

Ele também sabe que está sendo manipulado. E pode levar dois bilhões de anos, mas ele encontra uma forma de manipular os manipuladores. O Doutor afinal tem tempo, tudo que lhe resta é tempo, para afiar seu próprio bico, abrir seus próprio caminho e chegar à Gallifrey pela rota mais longa. Mas pelos seus próprios passos.

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Nada mais emblemático da tenacidade de um homem do que abrir seu caminho para liberdade, esmurrando uma parede 400 vezes mais rígida do que diamante, ao longo de bilhões de anos. O Doutor escolhe e cria seu próprio caminho. Se entregando à inevitabilidade da morte. Conversando com seus próprios fantasmas e restos mortais. Ensinando a si mesmo como vencer e lembrando a si mesmo de quem ele é. O Híbrido. Aquele que colocará Gallifrey de joelhos.

E sem mais delongas… que venha o próximo e último episódio dessa maravilhosa temporada.



Posters-TheMagicianApprenticeSérie: Doctor Who
Temporada:
Episódio: 11
Título: Heaven Sente
Roteiro: Steven Moffat
Direção: Rachel Talalay
Elenco: Peter Capaldi
Exibição original: 28 de Novembro de 2015 – BBC One
Graus de Kevin Bacon: 2 – Peter Capaldi atuou  em Momento Inesquecível (1983) com John M. Jackson que esteve com Questão de Honra (1992) com Kevin Bacon.

 


Mário Bastos

Quadrinista e escritor frustrado (como vocês bem sabem esses são os "melhores" críticos). Amante de histórias de ficção histórica, ficção científica e fantasia, gostaria de escrever como Neil Gaiman, Grant Morrison, Bernard Cornwell ou Alan Moore, mas tudo que consegue fazer mesmo é mestrar RPG para seus amigos nerds há mais de vinte anos. Nas horas vagas é filósofo e professor.

3 comentários sobre “Review | Doctor Who 9×11: Heaven Sent

  1. Ao entrarmos neste mundo, nasce também outra coisa. Você começa uma vida e ela começa uma jornada em sua direção. É lenta mas nunca para. Onde quer que vá, seja qual for o caminho, te seguirá… nunca mais rápida nunca mais lenta, mas, sem fim. Você correrá, ela caminhará. Descansará, mas, ela não. Um dia acabarão passando tempo demais no mesmo lugar, sentará parado demais ou dormirá profundamente demais e quando tarde demais se levantar para sair, vai perceber uma sombra bem ao lado… sua vida então terá chegado ao fim!!!

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