Crítica | Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindewald

Crítica | Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindewald

Sobra magia e falta (muito) cinema, no novo episódio da saga arcana de J.K. Rowling

História, Roteiro e Direção

Existe uma distinção entre história e roteiro que precisa ser muito bem pontuada quando se trata de analisar uma obra cinematográfica. E no meio dessa diferença está a indispensável função do diretor.

Não que a função do diretor se resuma a essa mediação, porém, sem dúvida, trata-se de uma das mais importantes. Afinal, mais importante do que uma boa história é como se conta essa história. E essa perspectiva, da exposição sobre o conteúdo, é talvez aquela que melhor se acomoda com as características de uma mídia tão poderosa e cheia de recursos quanto o cinema. Em suma: um bom diretor pega um roteiro ruim e faz um bom filme, enquanto por melhor que seja um roteiro e a história que ele pretende contar, o mesmo não resiste nas mãos de um diretor menos capaz.

Assim, em se tratando de Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindewald – filme que conta a segunda parte da nova saga do universo mágico de J.K. Rowling – é possível desenvolver uma análise que aponte seus principais problemas a partir dessa perspectiva que lida com a tríade história, roteiro e direção.

História e HP-HP: ou como Dumbledore e Scamander são mais interessantes do que Harry Potter

Os Crimes de Grindewald, foto

A história de Os Crimes de Grindewald é espetacular. O universo criado por J.K. Rowling sem dúvida alguma é uma das melhores coisas já apresentadas em matéria de fantasia – falo com tranquilidade, como diria meu amigo Julinho da Van, pois sou leitor ávido do gênero e jogador de RPG há pelo menos 25 anos. Como todo grande autor, ela executou um exímio trabalho de construção de mundos ao desenvolver o background dos livros de Harry Potter, criando um universo consistente e atraente que graças a isso se tornou um estrondoso e duradouro sucesso de público e crítica.

Em uma rara boa associação entre exploração de potencial comercial e estético, Rowling decidiu aprofundar seu universo desenvolvendo justamente os detalhes desse background. Nada de muito novo, e já tentado por criadores como George Lucas, com as prequels da saga Star Wars no início dos anos 2000. Rowling – e o produtor e diretor David Yates, é importante que se reconheça – porém, o fizeram de forma significativamente mais bem sucedida que Lucas, se considerarmos para fins de comparação, cada uma de suas primeiras incursões nesse movimento. Para mim, por exemplo, que sou fã de Star Wars desde que me entendo por gente não é difícil reconhecer que a Ameaça Fantasma é bem inferior a Animais Fantásticos e onde habitam. Aliás, eu mesmo escrevi sobre o primeiro filme da nova série de J.K. Rowling e, se observarem, verão que fiquei muito satisfeito com o resultado e, mais ainda, interessado em ver as sequências.

O que mais gostei de Animais Fantásticos – além do clima de época que me é muito atraente,e que guarda interessantes relações políticas com nosso momento atual – foi o fato de não ter Harry Potter. Sim, discordando de meus nobres colegas do “Choque de Cultura”, não acho que Harry Potter sem Harry Potter (vou resumir para HP-HP) seja golpe. Pelo menos nos filmes, acho Harry Potter um protagonista ruim e desinteressante que se resume a um McGuffin ambulante a partir do qual uma trama maior e muito mais interessante se desenrola. Retirar Harry Potter do centro das coisas, a meu ver, só favorece à exploração de boas histórias dentro desse universo.

Com isso a história de Animais Fantásticos apenas tende a crescer, e o fato de se envolver em um contexto de época tão importante da história do mundo, traçando paralelos entre o mundo místico, imaginado, e mundano histórico, apenas a fortalece. Newt Scamander é um excelente protagonista, interpretado por um ótimo ator em ascensão, e também um modelo de ser humano necessário em tempos tão sombrios. O espaço que começa a se dar a Alvos Dumbledore, além de importantíssimo por sua conhecida orientação sexual – a qual é instrumental para a trama, sendo, porém, abordada sem qualquer exposição exagerada – nesse segundo episódio é, ainda, um grande adendo.

Não me parece exagerado antecipar que o ótimo Dumbledore de Jude Law adquirirá um protagonismo de extrema relevância para toda a trama que irá se desenrolar. Na verdade, o que veremos nos próximos filmes tende a ser a história de Dumbledore em seus tempos áureos, com Scamander servindo mais como um personagem capaz de manter a relação mais comezinha com a audiência. Isso tudo me desperta interesse. Rowling, é sabido,tem tudo isso muito bem estruturado em sua mente já há algum tempo. Imagino mesmo que o final essa nova saga envolva um embate ainda mais épico do que aquele que marcou a já ótima conclusão da saga Harry Potter. Sim, HP-HP tende a produzir um resultado muito mais satisfatório do que HP jamais foi capaz de entregar.

Me detenho nessas elucubrações tangenciais para não incorrer no oitavo pecado capital, que apenas existe em nossa era, qual seja, o do “spoiler”. Pecado este pelo qual sou muito conhecido nos meus círculos mais próximos, portanto, ao qual sou naturalmente mais atento (quem se preocupa, afinal, com Ira e Vaidade na era das redes sociais, não é mesmo?).

Entretanto, parece que J.K. Rowling se tornou prisioneira de seu maior trunfo, a história. Sendo bem direto: J.K. é uma autora fenomenal, de literatura, mas ainda tem muito a aprender como roteirista de cinema.

O problema do roteiro e livro que eu queria que tivesse sido escrito

Os Crimes de Grindewald, foto

Desde o primeiro filme da série um certo, digamos “excesso de história” transposto para o roteiro já chamava a atenção. Alguns críticos viram aí um problema. Para mim, embora fosse evidente que Rowling insistia em tratar um roteiro como uma mera ferramenta para apresentar todos os aspectos de sua história, não chegou a incomodar. O que ocorre, porém, nesse filme, é que esse problema se aprofunda evidenciando a dificuldade de Rowling em fazer boas escolhas de desenvolvimento de narrativas e arcos dramáticos de personagens a partir da linguagem que tem em mãos, o cinema.

Em meu texto sobre o primeiro filme fiz algumas menções a isso. Particularmente naquilo que pode ser considerado como a confusão entre a linguagem de série de TV com a do cinema no que diz respeito ao desenvolvimento de arcos dramáticos de personagens. Isso, porque, a estrutura de uma película de cerca de 120 minutos demanda que quem conduz a narrativa faça opções. Personagens em excesso, todos sendo abordados ao mesmo tempo quase que em um mesmo plano de resolução de problemas, são bastante comuns em seriados de TV que se desenvolvem ao longo de diversas horas mesmo que em uma única temporada – se pensarmos em uma comparação temporada-filme . Na literatura há, ainda, mais espaço para isso tudo. No cinema, porém, não. Por isso adaptações para cinema de obras de literatura são tão difíceis. A linguagem impõe que certas escolhas sendo tomadas. O problema é que o roteiro de J.K. Rowling, ironicamente, não parece ser capaz de fazer essas escolhas.

Como sugeri acima, Rowling parece pensar a estrutura de um roteiro como a estrutura de um uma obra de literatura. E, infelizmente, não é assim que funciona. O roteiro, ainda que seja importante, tem uma função instrumental em um filme, ou seja, serve ao propósito de conduzir a visão do diretor. Muitas vezes o diretor irá optar por dispensar cenas e diálogos, na sala de edição, por entender que a ideia ou é desnecessária ou já foi exposta de outra forma mais interessante com um simples take de 10 segundos. Ou irá até mudar o roteiro – com a devida participação do roteirista conforme as regras do sindicato – e recorrer a outros artifícios com jogos de câmera, ou técnicas de narrativa, para passar a sensação que entende ser importante para que aquela história seja contada. Muita coisa pode, inclusive, acontecer fora da tela e ainda assim isso estar incorporado na história. A história é algo muito maior do que vemos na tela. A tela costuma ser apenas a ponta de um imenso iceberg.

Rowling e Yates, porém, parecem que se esquecem dessa regra básica do cinema. Eles têm um belíssimo e gigantesco iceberg em mãos e sentem a necessidade de expor muito mais dele do que seria necessário. E na medida que fazem isso, o filme, enquanto linguagem, fica cada vez mais superficial e mais prejudicado.

Assim, os problemas do Animais Fantásticos são, em sua essência, da mesma natureza no primeiro e no segundo filme da saga. Porém, como nessa continuação os personagens precisam ser mais desenvolvidos, e ainda se introduzem mais personagens, tudo fica exposto de forma muito rápida, sem uma coesão interior, apostando apenas em nossa capacidade enquanto espectador – que está diretamente relacionada a nosso nível de conhecimento do universo de J.K. Rowling – de alinhavar o que está sendo ali apresentado. O filme não se sustenta enquanto filme, sendo apenas um instrumento ao qual J.K. Rowling recorre arbitrariamente para contar sua história. O termo arbitrariamente é importante nesta afirmação. Pois o cinema tem regras. Talvez tenha sido melhor, curiosamente, que ao invés de um filme, Rowling tivesse escrito um outro livro (e deixado a adaptação, o roteiro, nas mãos de um roteirista experiente).

Talvez por isso eu tenha saído do filme com uma sensação tão estranha: pela primeira vez eu desejei que um filme que vi não tivesse sido um filme, mas um livro.

O movimento mais natural é, ao lermos uma obra de literatura arrebatadora, é imaginar uma adaptação para o cinema. Claro, sabemos que no cinema, devido à mudança de linguagem, e a limitações evidentes – na literatura o limite é apenas o da imaginação do autor e do leitor – sempre se perde algo em se tratando de adaptações. Ainda assim, desejamos, como em um curioso espécie de fetiche sadomasoquista da nossa era, que um bom livro seja “estragado” com uma adaptação para o cinema. Ao ver Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindewald tudo que eu pensei foi como gostaria de ter lido esse livro, ou melhor, sendo mais específico, como eu gostaria que J.K. Rowling tivesse optado por contar aquela história na forma de um livro.

A culpa é do autor (e o autor é o diretor)

Os Crimes de Grindewald, foto

A questão é que o verdadeiro autor de um filme é – ou ao menos deveria ser – o diretor. É ele o narrador da história. Ele é o equivalente ao escritor de uma obra de literatura, ou um quadrinista. Cabe ao diretor saber escolher as ferramentas apropriadas que o cinema lhe disponibiliza para contar a história que lhe foi confiada. O roteiro, como já destaquei, é apenas mais uma dessas ferramentas. E a verdade é que David Yates, experiente diretor da franquia, fracassa vigorosamente nesse filme.

Talvez isso se dê pelo fato dele ter muito respeito pela obra de J.K. Rowling, talvez pelo fato desta ser produtora e exigir que o diretor siga o roteiro dela de forma o mais fidedigna possível, talvez ele já esteja um tanto quanto cansado de dirigir filmes da franquia Harry Potter (Yates dirigiu os 4 últimos filmes da franquia original e o primeiro filme da saga de Animais fantásticos) e precise descansar um pouco. De qualquer forma, caberia a ele apontar problemas do roteiro, como os que apontei, e convencer Rowling a fazer escolhas que permitissem que a história fosse melhor apresentada cinematograficamente para atender aos fins de uma experiência de cinema satisfatória. E isso ele não faz.

Yates é incapaz de conduzir uma narrativa envolvente, graças ao roteiro, sem dúvida, mas com sua experiência se esperaria que ele pudesse contornar, ao menos em momentos importantes, essa dificuldade. A verdade é que em momento algum nos sentimos devidamente envolvidos nos dramas daqueles personagens. Ironicamente, quem mais se aproxima é o Jacob de Dan Fogler que deixa de ser um mero alívio cômico e passa a funcionar como um importante representante da perspectiva humana na história. Uma perspectiva que parece que se tornará gradativamente mais importante. Sendo justo, a relação entre Dumbledore e Grindelwald é também bastante interessante; mas como não há tensão entre os personagens, e seus conflitos apenas se estabelecem remotamente, a resolução fica postergada para os próximos filmes (provavelmente com um grande clímax no fim da franquia).

A título de exemplo observe-se o quão é mal explorada a relação entre Newt e Tina, e entre Newt e Leta Lestrange (Zoë Kravitz, totalmente desperdiçada no papel). Várias tensões são sugeridas ali, e nenhuma se resolve a contento, nem mesmo no que diz respeito à relação entre Leta, Newt e o irmão de Newt, Teseus. Aliás, a própria Leta deveria ter um melhor desenvolvimento, já que seu papel se apresenta como crucial para o desenvolvimento da trama. Porém, em momento algum seu arco dramático é realizado de forma convincente, nem como personagem, nem como um mecanismo da narrativa. O mesmo pode ser dito, lamentavelmente, do Creedence de Ezra Miller, outro ator – e personagem – desgraçadamente mal aproveitados.

E os problemas da direção não param por aí. Isso fica claro desde a primeira sequência, na qual a edição, e fotografia escura – que não posso reputar ao 3D, já que assisti a uma versão em 2D mesmo -, e um péssimo domínio de elementos de cena e movimentos de câmera não nos permitem compreender com clareza o que está acontecendo. Ao longo de toda a película a situação se repete: efeitos visuais, designs de produção e figurino muito competentes são estragados por uma iluminação medíocre, uma cinematografia incompetente e uma montagem diretamente extraída de um filme ruim de Michael Bay. O que também surpreende dada a qualidade técnica dos trabalhos prévios de Yates. Embora ele nunca tenha apresentado produções que nos permitam classificá-lo como um grande ou talentoso diretor, ele ao menos sempre foi competente. Falta também bastante competência a ele, infelizmente, nessa obra.

“Desastrium Impeditum”

Os Crimes de Grindewald, foto

Muitos dirão que é compreensível que Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindewald seja um filme abaixo da média, por se tratar de um episódio de desenvolvimento de uma franquia que pretende ter cinco filmes. Aceitável, da perspectiva da boa história que parece se desenvolver até poderia ser. Compreensível jamais.

Em outras palavras, o filme apenas é bom como parte de uma história maior. E ainda assim, como parte dessa história, é uma parte ruim. Claro, os elementos que o filme apresenta serão sem dúvida alguma muito importantes para a condução da saga. Aqui, mais uma vez, não quero dar spoilers, mas Dumbledore é, indiscutivelmente, o verdadeiro nome da trama do filme (e talvez de toda a saga). O triste é que não precisava ser assim. Como disse, se fosse para fazer um filme assim, era melhor escrever um livro.

Mas, de fato, temos uma boa história. Temos também boas atuações, de quase todos os atores; particularmente um desenvolvimento importante de Redmayne na pele de seu protagonista, e um arco interessante – que embora seja mal desenvolvido no filme por conta dos problemas de roteiro e direção já apontados – não deixa de se dar de forma convincente graças ao talento do intérprete. Há, também, conforme sugerido, boas realizações técnicas. Mas tudo isso, porém, é apresentado como um amontoado de coisas sem muita coesão narrativa interna. O que apenas me fez lamentar mais ainda.

Talvez eu esteja sendo muito duro com o filme. Talvez. Mas o fato é que é preciso julgar as obras dentro de um padrão que estas estabeleceram para si e, dessa perspectiva, Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindewald está muito aquém, não apenas da obra de J.K. Rowling, mas mesmo do trabalho de David Yates.

Espero que seja o pior filme dessa magistral saga e que, nos próximos, tenda apenas a melhorar. Mas para que isso ocorra, será preciso, sem dúvida, convidar um roteirista para dar apoio a J.K.Rowling e, talvez até, mudar de diretor; é evidente que David Yates precisa de um descanso e pode ser muito mais útil à franquia como o atento produtor que se sabe que ele é.

Apesar de tudo, não tenho dúvidas que os fãs sairão satisfeitos. Pela história. Não pelo filme. Dessa vez, Rogerinho, sobra magia – magia top! -, mas a magia, sem dúvida, não é a do cinema. E quando se trata de um filme, a única magia que verdadeiramente interessa não é outra senão essa.


Uma frase: – “Você nunca encontrou um monstro que não fosse capaz de amar, Newt.”

Uma cena: Newt faz amizade com o Zouwu, um exótico animal fantástico chinês.

Uma curiosidade: Nicolas Flamel (criador da Pedra Filosofal, e mencionado várias vezes em “Harry Potter e a Pedra Filosofal”) é um personagem (que deveria ser importante, mas é muito mal aproveitado) deste filme.


Os Crimes de Grindewald, cartazAnimais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald (Fantastic Beasts: The Crimes of Grindelwald)

Direção: David Yates
Roteiro:
J. K. Rowling
Elenco: Eddie Redmayne, Katherine Waterston, Dan Fogler, Alison Sudol, Ezra Miller, Zoë Kravitz, Callum Turner, Claudia Kim, William Nadylam, Kevin Guthrie, Jude Law e Johnny Depp
Gênero: Aventura, Família, Fantasia
Ano: 2018
Duração: 134 minutos

Mário Bastos

Quadrinista e escritor frustrado (como vocês bem sabem esses são os "melhores" críticos). Amante de histórias de ficção histórica, ficção científica e fantasia, gostaria de escrever como Neil Gaiman, Grant Morrison, Bernard Cornwell ou Alan Moore, mas tudo que consegue fazer mesmo é mestrar RPG para seus amigos nerds há mais de vinte anos. Nas horas vagas é filósofo e professor.

Um comentário em “Crítica | Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindewald

  1. Não sou fã do universo HP, mas curti bastante o primeiro filme de animais fantásticos, exatamente por ter uma outra pegada e um novo protagonista, que é um personagem excelente de ser explorado. Porém, no segundo filme fica evidente que J.K Rowling não sabe bem como conduzir essa nova franquia e receia fazer escolhas importantes para o cinema. Fica claro, com isso, que o foco principal daqui para frente será a jornada de Dumbledore contra Grindelwald, relegando a segundo plano o protagonismo concedido inicialmente a Newt Sacamander. Estou muito decepcionada! Seria mais honesto intitular essa nova leva de filmes de HP-HP (Harry Potter sem Harry Potter rs) com algo tipo: a jornada de Dumbledore. 🙁

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