Crítica | O Agente Secreto

Crítica | O Agente Secreto

Com toques de drama, terror, comédia e ação, o novo filme de Kleber Mendonça FilhoO Agente Secreto – revela um Brasil ambíguo, tanto no passado, já que o filme se passa nos anos 1970, quanto no presente, pela verossimilhança com eventos atuais. Impecavelmente inteligente, o longa tem a marca de Mendonça Filho ao permanecer na mente do espectador mesmo após o fim da sessão. 

Aviso de spoilers

Um misterioso homem dirigindo um fusca amarelo para em posto de gasolina, no meio de lugar nenhum. Um frentista feliz por finalmente receber um cliente, em meio a um cenário de miséria e desalento, explica a existência de um cadáver mais à frente. Coberto apenas por uma papelão, o corpo jaz sob os olhos incrédulos do motorista, sem que nenhuma autoridade se ocupe dele, já que é carnaval. Nesta primeira e icônica cena, Kleber Mendonça Filho prepara o espectador, nos informando que a morte está à espreita, mas não apenas isso, que ela é banalizada. 

É com um ritmo próprio que somos levados a conhecer a história de Marcelo (Wagner Moura). Assim como em Bacurau, as respostas não estão mastigadas e tampouco prontas. Diálogos sensíveis interpretados por atores fantásticos são as pistas que se precisa para entender o mistério do protagonista. Aliás, as pistas estão em todo lugar, como no gato de duas caras que vive na casa de dona Sebastiana (Tânia Maria), uma singela metáfora para um Brasil dividido por uma ditadura violenta e corrupta e um viver que resiste, seja pulando carnaval, seja ajudando perseguidos que têm também, assim como o gato, dois nomes.

Aqui, a ditadura cívico/militar participa apenas como pano de fundo, fazendo-se representar sobretudo pela polícia corrompida e impiedosa com aqueles a quem deveria servir. Com a genialidade corriqueira, Mendonça Filho traz à luz cenas que remetem a eventos atualíssimos, como a cena em que uma mulher da alta classe social do Recife comparece ao Instituto de Identidade – e não à delegacia – para depor sobre o atropelamento do filho de sua empregada doméstica após deixar a porta aberta para a criança, que estava sob os seus cuidados. É aí que o espectador percebe que, de fato, para uma parcela da população essa mesma ditadura nunca acabou. “Coincidentemente”, em 2020, o menino Miguel, filho da trabalhadora doméstica Mirtes Renata, caiu do 9º andar, quando ela saiu para passear com os cachorros da patroa. Sari Corte Real, a patroa, colocou o menino em um elevador, sozinho, porque ele estava chorando pela mãe.

Os corpos negros no necrotério, assim como a perna cabeluda misteriosa também revelam a política de morte do Estado, o qual Kleber insistentemente nos relembra que se passava na gestão de Ernesto Geisel, mas que poderia, tranquilamente, se passar neste nosso ano da graça de 2025, quando quase 80% das mortes violentas é de pessoas negras e moradoras da periferia.

É na incredulidade do espectador mais atento que vislumbramos a razão da fuga de Marcelo (Wagner Moura). Um poderoso empresário, mancomunado com o Estado, que mira toda a sua xenofobia pela cultura nordestina a outras razões espúrias de cunho prático no protagonista e sua esposa, banalizando o mal, desumanizando para eliminar sem remorsos. É tão simples que choca.

Mesmo em meio a tantas violências, a interpretação sensível de Wagner Moura nos acolhe como quem abraça um amigo. São suas palavras que nos trazem de volta à nossa humanidade. Um salve para a participação de Alice Carvalho como Fátima, a esposa de Marcelo (Wagner Moura) que, com um texto breve, expurga uma raiva feminina secular, raiva essa que nos impulsiona diariamente contra toda a misoginia e machismo estrutural.

Para além de um roteiro brilhante, o longa faz uma crítica contumaz sobre memórias. O filme é sobre um país que insiste em esquecer seus algozes de ontem e de hoje. Ao fim e ao cabo, Marcelo (Wagner Moura) nunca conseguiu guardar um documento de sua mãe; seu filho, Fernando, não sabe quem foi Marcelo; as pesquisadoras não puderam continuar o resgate dos documentos históricos; o Cine São Luís se tornou um prédio de doação de sangue. Somos um país de memórias fragmentadas e esquecidas. O Agente Secreto nos coloca a premente necessidade de resgatar nossas histórias e lançar um olhar verdadeiramente humano para a violência que tem cor e classe social e que, há muito, foi naturalizada como uma perna cabeluda atacando as pessoas por aí. 


Uma frase: Fátima – “Vá tomar no seu cu!”

Uma cena: A panorâmica do Recife nos anos 1970.

Uma curiosidade: A atriz Tania Maria (Dona Sebastiana) foi descoberta por Kleber Mendonça Filho há seis anos, nas filmagens de Bacurau. O trabalho como figurante foi o primeiro de Tânia Maria no cinema. Ela nunca tinha atuado antes.


O Agente Secreto

Direção: Kleber Mendonça Filho
Roteiro: Kleber Mendonça Filho
Elenco: Wagner Moura, Carlos Francisco, Tânia Maria, Robério Diógenes, Alice Carvalho, Gabriel Leone, Maria Fernanda Cândido, Hermila Guedes, Isabél Zuaa e Udo Kier
Gênero: Drama, Mistério, Suspense, Thriller político, Crime
Ano: 2025
Duração: 158 minutos

Elaine Fonseca

Jornalista, servidora pública e nerd.

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