Crítica | Pobres Criaturas

Crítica | Pobres Criaturas

Pobres Criaturas pode ser um filme incômodo ou aconchegante, a depender do perspectiva do espectador. Também é capaz de despertar ambas as sensações e ainda incitar reflexões profundas. O cineasta grego Yorgos Lanthimos, reverenciado por Hollywood pela direção de A Favorita (2018), constrói uma fábula instigante, perturbadora e provocativa, que revisita o clássico Frankenstein, ao narrar a jornada encantadora de amadurecimento de Bella Baxter, perfeitamente interpretada por Emma Stone.

A protagonista dessa história é uma mulher que renasce depois de tentar o suicídio. Bella é fruto de uma ousada e controversa experiência científica do médico Godwin Baxter, vivido por Willem Dafoe. O cérebro do bebê que crescia em seu ventre é o que a traz de volta à vida. É com essa mente infantil habitando um corpo feminino adulto que embarcamos numa narrativa brilhante que evidencia as incoerências cotidianas da construção social de gênero pelo patriarcado capitalista.

Bella Baxter é um ser livre no mundo em busca de conhecimento e aventura. Uma metáfora do que poderia ser uma mulher criada para interpretar o comportamento humano a partir de uma mentalidade empírica e pragmática. As opressões e os filtros sociais lhe são estranhos, porque desafiam a lógica sob a qual foi educada por seu pai God(win). Assim ela passa pelas etapas do desenvolvimento cognitivo e social, descobrindo o próprio corpo, explorando sentidos, exprimindo sentimentos de forma espontânea, e questionando a ordem supostamente natural das coisas estabelecidas pela sociedade ocidental.

O longa é uma fantasia retrofuturista distópica contextualizada por cenários inspirados em estilos artísticos como o surrealismo e o steam punk; por figurinos que misturam referências das estéticas neovitoriana, barroca, gótica e dos anos 60; e ainda por uma cinematografia complexa, suntuosa e arrojada, que consegue o feito de mesclar, organicamente, métodos tradicionais e não convencionais de captura, como o uso de lente olho de peixe em diversos e oportunos momentos da trama. Além disso, os arranjos repetitivos e desafinados da trilha sonora complementam perfeitamente a atmosfera do filme.

A produção de Yorgos Lanthimos, no entanto, apesar de tanto refino, só alcança o status de potencial obra prima, porque conta com atuações esplêndidas. Com certeza, um filme que marca talvez o auge de Emma Stone. Chama atenção ainda a interpretação de Mark Ruffalo no papel de Duncan, o advogado canalha bon vivant que pensa estar se aproveitando de Bella mas acaba enlouquecendo por não saber lidar com uma mulher que subverte padrões e estereótipos. Outro destaque é o persongem de Max, vivido por Ramy Yossef, o jovem cientista que se apaixona genuinamente pela personalidade livre de Bella.

Fetiches e empoderamento feminino

Em Pobres Criaturas, alguns tabus, fetiches e estereótipos associados ao feminino são abordados. A descoberta do prazer sexual é um desses temas. Bella explora sozinha suas genitálias, sem que esse ato seja reprimido. E, embora seja um ponto positivo, essa abordagem traz consigo algumas questões incômodas e perturbadoras, pois apesar de habitar um corpo adulto, a protagonista possui ainda uma mente infantil. O debate ou o conflito possível de emergir para o espectador nesse ponto do filme é sobre a própria definição do crime de pedofilia. 

Mesmo que a intenção do roteiro seja a de construir uma personagem empoderada, o longa recai em uma armadilha muito comum quando se projeta uma narrativa feminina a partir do olhar de um cineasta homem. Há realmente necessidade de expor o corpo da atriz quase que integralmente nas cenas de sexo? É um recurso que agrega ao desenrolar do desenvolvimento de Bella ou serve mais ao fetiche do público masculino? Aprofundando um pouco mais a reflexão: Qual seria então a relação que se estabelece entre corpo e mente nas nossas relações afetivas e sexuais postas pelo filme? 

Em alguns momentos, tive a nítida impressão de que o corpo e o sexo praticado por uma pessoa vulnerável se disfarçava numa roupagem muito sutil e superficial como se servisse ao empoderamento feminino. Outro exemplo é a forma como a prostituição é tratada. Há certa romantização, ainda que faça sentido para o drama da protagonista. Não se trata de levantar a bandeira hipócrita contra profissionais do sexo. O feminismo pressupõe, acima de tudo, que as mulheres sejam livres para decidirem seus destinos, principalmente, sobre seus corpos.

Para além dessas problemáticas, Pobres Criaturas surpreende ao subverter a lógica do “Born Sexy Yesterday” a qual as principais heroínas de grandes clássicos cinematográficos, especialmente as de ficção científica, são submetidas. É quando temos uma personagem inocente, que não conhece nada da vida, caracterizada em um corpo adulto e sensual. Ela é conduzida por um homem, que a ensina como viver nesse mundo que lhe é estranho. Bella aceita se aventurar com Duncan e até parece se colocar nesse papel de tutelada. No entanto, a protagonista se apropria de sua própria jornada num ponto de não retorno. 


Uma frase: – “Eu me aventurei e não encontrei nada além de açúcar e violência”.

Uma cena: Bella andando por uma cidade portuguesa, provando comidas típicas e observando a dinâmica da vida em sociedade.

Uma curiosidade: Assim como fez em A Favorita (2018), o cineasta fez os atores ensaiarem durante três semanas uma variedade de jogos de improvisação.


Pobres Criaturas (Poor Things)

Direção: Yorgos Lanthimos
Roteiro: Tony McNamara e Alasdair Gray
Elenco: Emma Stone, Mark Ruffalo, Willem Dafoe e Ramy Youssef 
Gênero: comédia, drama e romance
Ano: 2023
Duração: 141 minutos

Bianca Nascimento

Filha dos anos 80, a Não Traumatizada, Mãe de Plantas, Rainha de Memes, Rainha dos Gifs e dos Primeiros Funks Melody, Quebradora de Correntes da Internet, Senhora dos Sete Chopes, Khaleesi das Leituras Incompletas, a Primeira de Seu Nome.

Um comentário em “Crítica | Pobres Criaturas

  1. Excelente crítica pra refletir melhor no filme sensacional Pobres Criaturas! As problematizações são muito pertinentes. Que possamos aprender mais Com Bela Baxter e subverter padrões de todos os tipos que nos alienam e escravizam!

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