Crítica | Armageddon Time (2022)

Crítica | Armageddon Time (2022)

Armageddon Time: De boas intenções basta o inferno

Quando assisti a Armageddon Time soltei um muxoxo: como pode um filme tão preguiçoso? E assim pensei em escrever: uma preguiçosa crítica. Mas o que me movia não era a falta de vontade, e sim a inconformidade com o trabalho. Havia um “quê” de mal feito no que eu acabara de ver que a devolutiva só poderia ser igualmente mal feita. 

Dirigido por James Gray (conhecido por Ad Astra – Rumo às estrelas), faz parte desses lançamentos de 2022 que ganharam Cannes e geraram buxixo para o Oscar. Trata-se de um retorno biográfico do diretor às lembranças de sua infância nos anos oitenta em Nova York, quando estudava no Queens. Quem o encarna no período infanto-juvenil é o personagem Paul. Às vésperas da eleição de Ronald Reagan, seu lar passa por momentos conturbados: o emprego de sua mãe Esther (Anne Hathaway), a doença escondida de seu vô Aaron (Anthony Hopkins) e as consequências das besteiras que o garoto faz por aí.

É um filme de passagem, não possui bem um começo, e muito menos um final. Paul Graff (Banks Repeta) e Johnny Davis (Jaylin Webb) são dois alunos de uma escola pública no Estados Unidos. Paul é branco e vive num bairro de classe média, Johnny é preto e mora na periferia. Certo dia, após serem pegos badernando a aula, são mandados para a coordenação e repreendidos pelo comportamento intransigente dentro de sala. A partir daí desenvolvem uma amizade, sempre calcada em ações ilícitas, como fumar maconha no banheiro da escola ou roubar computador do colégio. Embora o entusiasmo por cometer infrações parta de Paul, a represália de suas atitudes é previsível: preto se fode, branco se safa.

Paul é um menino rebelde – e também mimado. Sua mãe cede a seus caprichos de criança insistente, o pai é um frustrado mal sucedido e cobra suas expectativas em cima dos filhos, o irmão mais velho só o torra a paciência, o avô cumpre a figura paternalista e conselheira tentando apaziguar os problemas do lar, e suas avós são só senhoras que vez ou outra se manifestam nas reuniões domésticas. 

Johnny também possui sua rebeldia, insatisfeito com a vida que tem. Pelo que conta, seu irmão foi servir as Forças Armadas, e sua avó passa por severos problemas de saúde. Mas é só isso que se tem notícia, além dele ser repetente.

Diante dos delitos e dos problemas por eles acarretados, com fins de isolar o protagonista das “más influências”, a família transfere Paul de escola: vai para uma particular, cheia de burguês safado. As distinções sócio-raciais ali se acirram, e os dois distintos mundos de Paul e Johnny distanciam-se ainda mais, como na cena enquanto os dois conversam no intervalo da escola de Paul através de uma grade. Paul, dentro do cerco colegial, e Johnny, do lado de fora, na rua.

Determinado dia na escola, em cerimônia discente, escuta um discurso neoliberal e meritocrata de Maryanne Trump (Jessica Chastain), uma das patrocinadoras da instituição que estuda. Em perene expressão facial, ele sai do auditório e começa a caminhar pelas ruas. Fim do filme, sem dar satisfação, obrigada.

Em níveis técnicos aparentemente nada se pode falar, está ali entregue toda a fotografia em tons vintage, a reconstrução histórica da direção de arte, cena e objetos. Além de um elenco caro, que diga-se de passagem, não necessariamente sustenta a obra. 

Mas em níveis discursivos, assemelha-se com quase nada. O fracasso do sonho americano na vida de seus cidadãos em meio à contextualização sócio-política chega pela família de Paul – um tanto disfuncional, como todas. Nas mesas de jantar,  os membros se dividem em diferentes vertentes ideológicas: o benevolente avô num discurso progressista e democrático, baseado nas sofridas experiências anti-semitas de seus antepassados, já outros membros expressam livremente opiniões racistas e de classe mérdia.

Johnny é o único personagem negro do filme – tirando sua avó, que aparece míseros segundos agonizando na cama de uma humilde casa. Talvez tenha sido esse o isolamento pretendido pelo diretor, em caráter autobiográfico, expor a realidade por ele vivida. Ao trazer proximidade quase nenhuma com pessoas racializadas, o drama foca na vida de uma branca família estadunidense – na licença poética do inocente infanto – que mesmo a despeito de seus privilégios, tenta se encaixar em uma forma de vida que não lhes cabe, falhando sucessivamente no bem suceder.

E lá vai a branquitude realizar filmes com grandes orçamentos, ganhar prêmios em festivais – e até ousar ser um fracasso de bilheteria – se apoiando na vida de pessoas pretas. Afinal, se não fosse Johnny, o argumento do filme nem existiria. 

Há até espaço para um diálogo conscientizador por parte de seu avô, onde compara as dificuldades enfrentadas pelos judeus durante o nazismo com a discriminação racial exercida em solo norte-americano. Tentando aproximar as duas realidades, diz para o seu neto que não pode deixar essas opressões acontecerem sem fazer nada e que não deve reproduzi-las. Então eles lançam um mini-foguete no parque e ficam olhando para os fogos daquela maquininha voadora, se divertem e dão risadas. Maravilha!

Percebam a sádica ironia: não estou pedindo para que haja protagonistas negros apenas com finais felizes, não estou pedindo para brancos não fazerem mais filmes com só uma pessoa preta. Só peço bom senso. Tanta coisa para abordar, me pergunto como cargas d’água esse filme conseguiu aparecer nos charts. Mais uma história de problema racial com protagonismo branco. Mas não vamos rogar inocência e dizer que incompreendemos a condição de tais circuitos, pactos.

Daí retorno à prima angústia sobre o filme e sobre o texto que redijo: vale a pena ainda falar de coisas como essa? 

É por essas e outras que o racismo não está morrendo.


Uma frase: “E nada vai ser de mão beijada. Vai ser porque fizeram por merecer”

Uma cena: Johnny vai dormir na casa de madeira atrás da casa de Paul

Uma curiosidade: A atriz Cate Blanchett foi escalada para fazer o papel de Maryanne Trump, mas posteriormente foi substituída por Jessica Chastain.


Armageddon Time

Direção: James Gray
Roteiro: James Gray
Elenco: Anne Hathaway, Jeremy Strong, Banks Repeta, Jaylin Webb e Anthony Hopkins
Gênero: Drama
Ano: 2022
Duração: 115 minutos

Noah Mancini

Bacharel Interdisciplinar em Artes e Design pela UFJF, MBA em Comunicação e Marketing pela Faculdade Descomplica e Mestrando em Cinema e Artes do Vídeo pela UNESPAR. Arte, crítica e deboche.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *