Crítica | A Mulher Rei
Sabe quando você assistiu Pantera Negra e se perguntou “Por que Wakanda não se movimentou para salvar os negros que estavam sendo escravizados por nações colonizadoras? Era só pegar as Dora Milaje que elas dariam conta do recado”. Bom, alguém finalmente conseguiu convencer quem tem dinheiro a investir em uma ideia parecida: A Mulher Rei. A vantagem é que Viola Davis esteve liderando várias frentes, dessa vez.
“A Mulher Rei”, é um épico de ação ambientado na África Ocidental da década de 1820, sobre o exército feminino do Reino do Daomé. Feito em grande parte por mulheres e com um elenco quase completamente negro, o filme é uma das produções mais poderosamente diferentes de tudo que já foi produzido na história do cinema – o que pra muitos se resume a Holywood.
Dirigido por Gina Prince-Bythewood (“The Old Guard”, “Love and Basketball”), “A Mulher Rei” começou como uma ideia há sete anos, após uma viagem de Maria Bello (produtora) à África. Apaixonada pela história das Agojie, apresentou o conceito para a produtora Cathy Schulman (Crash).
Inspirado em eventos históricos, A Mulher Rei se passa na África Ocidental do século 19, onde um exército só de mulheres – liderado pela general Nanisca – defende seu governante, o rei Ghezo (John Boyega), contra ataques de um grupo rival que tenta minar seu poder. Nanisca se vê testada por uma consequência de eventos pessoais: A ascensão de um novo general da nação Oyó, Oba Ade (Jimmy Odukoya), a chegada da nova guerreira Nawi (Thuso Mbedu), com quem ela compartilha uma história, bem como a responsabilidade de liderar aliados como Izogie (Lashana Lynch) e Amenza (Sheila Atim), além de propor uma nova forma de sobrevivência da sua nação e para o seu povo.
O filme aborda temas muito sensíveis, mas dando destaque a exploração dos corpos de mulheres negras, e a venda de escravos promovida por nações europeias que financiavam outras pequenas nações africanas, para que capturassem e vendessem enormes grupos de negros, servindo como mão de obra nas colônias de Portugal, Espanha e do Reino Unido.
A Mulher Rei é um épico de ação que lembra grandes clássicos como Coração Valente (ou qualquer filme desses sobre brancos sofrendo um processo civilizatório de serem oprimidos por outros brancos). Destaque para um poderoso elenco de pessoas negras, roteiro fechadinho, uma sova sangrenta e com homem apanhando de mulher (gostoso demais).
Pra mim, a melhor parte do filme foi ver a criação de laços entre as guerreiras, mas a cena pós-crédito carrega uma emoção tão forte que só quem já presenciou algo parecido vai entender aquele ritual. E felizmente já pude presenciar isso.
A parte desnecessária do filme foi aquele romance com redenção. Incluíram um brasileiro falso na parada… Não era nem pra tá ali! Se fizeram isso pra tentar ganhar pontos com a gente, nem precisava. Poxa, só de trazer Viola Davis aqui já foi coisa grande.
Eu fico imaginando a dificuldade que foi convencer que esse filme vai vender pra caramba e não fará sucesso apenas com o público negro, mas essa gente só bota fé no nosso trabalho depois que já está feito. Eles não sabem o quanto precisam da excelência negra até ser feito.
Fiquem para o pós-crédito!
Sabe o que eu acho?
São tantas coisas que eu nem sei por onde começar. Talvez seria mais fácil fazer um podcast só pra discutir sobre esse filme e os balaios de emoções que ele pode causar às pessoas com um mínimo de consciência racial.
As histórias entrelaçadas entre as mulheres Agojie, as partes que remetem à saúde mental, a obrigação do casamento e a apropriação dos corpos femininos como produto de consumo e prazer, a forma de viver daquela sociedade e até mesmo maternidade e branquitude são trazidas para a apreciação pública. Eu fico imaginando, quantas pessoas como eu, não se emocionam quando assistem A Mulher Rei e conseguem buscar referências das nossas batalhas diárias. E aí, quando falamos sobre uma escravização que ainda perdura em nossas vidas, a maioria das outras pessoas (não-negras) não entendem do que se trata.
Existe toda uma discussão sobre o papel desempenhado por pessoas negras que se beneficiaram com o comércio de escravos e ajudavam os países europeus, mas é uma ótica distorcida do que de fato aconteceu. O Reino do Daomé é mantido por uma aliança que fez os líderes locais enriquecerem e ganharem poderio militar, esse poderio só serve para sobrepujar outros grupos menores ou defenderem-se de outros grupos locais com força parecida.
E aí vem a questão óbvia: Essas nações precisavam se defender também para não serem dizimadas ou escravizadas, mas nunca teriam força o suficiente para resistir ao ataque daqueles que os financiavam. No caso, os europeus. Nunca foi sobre um tratado de ajuda mútua, e sim de imposição. Se trata da exploração de uma mão de obra que poderia ser cortada na mínima menção de rebeldia.
Isso fica nítido nos diálogos entre o representante de Portugal com o brasileiro (Malik), ou ainda, quando o mesmo homem fala sobre como se sente naquele lugar. O colonizador odeia a população, ele tem o intuito de DOCILIZAR OU CIVILIZAR, apenas. Passar sua visão de povo. Logo, o colonizador se alia aos povoados africanos da região costeira somente com o intuito de reproduzir e lucrar.
As pessoas têm a necessidade de se aliar ao poder estabelecido, se adaptar. Independentemente se é pobre ou rico. Ele não tenta estabelecer a própria forma de enxergar o mundo quando se vê em desvantagem.
O problema é que essa estrutura se mantém de outra forma e perdura de uma maneira muito bem feita. Sim, tão bem feita que aqui no Brasil conseguiram construir um organismo tão perverso a ponto de naturalizar a destruição das vidas de pessoas que são enxergadas até hoje como descartáveis e mão de obra barata. Naturalizaram como privilégio ter uma pele mais clara, que é uma forma política de se separar daquilo que é considerado desumanizado, mesmo que seus antepassados, parte do sangue que corre nas veias, tenha origem africana ou indígena.
A Mulher Rei tem algo grandioso para a sociedade: A função de apresentar uma história que representa o potencial, feitos de pessoas negras do passado e presente, servindo como uma referência para o desenvolvimento crítico da nossa história. É um exemplo de que olhar para trás e tentar entender sobre a nossa história sem pensar no contexto de quem está sendo oprimido, pode ser um erro muito grave e que irá desenvolver cada vez mais alguma dificuldade para entender e se sentir pertencente a uma cultura que carrega uma grande história muito antes de ser contada por seus opressores.
Uma frase: “Usar as palavras ajuda a quebrar a magia”
Uma cena: A conversa entre Amenza e Nanisca sobre os pesadelos.
Uma curiosidade: “A Mulher Rei” conquistou facilmente as bilheterias norte-americanas em seu primeiro fim de semana nos cinemas, contra um mercado lotado de novos lançamentos. O filme, dirigido por Gina Prince-Bythewood, superou as expectativas e arrecadou US$ 19 milhões em vendas de ingressos, segundo estimativas da Sony no domingo.
A Mulher Rei (The Woman King)
Direção: Gina Prince-Bythewood
Roteiro: Dana Stevens, história de Maria Bello e Dana Stevens
Elenco: Viola Davis, Thuso Mbedu, Lashana Lynch, Sheila Atim e John Boyega
Gênero: Ação, Drama, História
Ano: 2022
Duração: 135 minutos