Review | Outer Wilds

Review | Outer Wilds

A curiosidade é uma característica intrínseca ao ser humano. Graças a ela, progredimos constantemente em conhecimento, ciência, tecnologia. Graças a ela também entendemos melhor o passado e frequentemente usamos esse conhecimento adquirido em prol do futuro. De mãos dadas com a curiosidade, vem a vontade de explorar; foi o desbravamento de terras desconhecidas que permitiu à humanidade conquistar e conhecer cada espaço do nosso globo.

Poucos jogos retratam genuinamente bem esse sentimento de wanderlust, sendo talvez o mais antigo exemplo conhecido o primeiro game da série The Legend of Zelda. Alguns jogos incentivam a exploração através de recompensas in-game, como armas, ferramentas e outros itens; em outros, o prêmio vem em forma de um troféu ou conquista, com o acúmulo de coletáveis; mas a retribuição mais frequente é a própria progressão no jogo, como é muito comum nos videogames do gênero metroidvania.

Outer Wilds, desenvolvido pelo estúdio independente Mobius Digital e desenhado por Alex Beachum à partir de um projeto que lhe rendeu uma tese de mestrado, aborda o dilema da curiosidade de uma forma diferente. Não existem recompensas em formas de itens, não existem coletáveis e as próprias conquistas do jogo estão atreladas a situações completamente aleatórias (e a grande maioria você vai acabar nem vendo no decorrer do jogo). A progressão e a narrativa existem e são importantes, mas elas aqui funcionam mais como uma força auxiliar para o jogador do que propriamente um incentivo. No caso, o maior incentivo para imergir no deslumbrante universo de Outer Wilds é outro: a vontade de aprender e entender como funciona seu deslumbrante universo e por que certas coisas estão acontecendo com ele.

A premissa básica é a seguinte: você controla um simpático alienígena (aliás, a simpatia é um dos pontos fortes do jogo, como explicarei mais à frente) que mora em um singelo planetinha em uma galáxia muito, muito diferente da nossa. Esse alien é uma de uma raça chamada de “lenhosos” (ou “hearthian”, no original), que possui uma tecnologia retrofuturista muito interessante – eles são de uma sociedade que já descobriu a exploração espacial (inclusive, bem avançada), mas que habitam em cabanas nas florestas e cujas máquinas parecem ter sido feito quase que na base da gambiarra.

Boa parte da conhecimento científico desse povo veio do estudo de uma outra civilização, mais antiga e já extinta – os Nomai. Não se sabe exatamente o que aconteceu com eles, mas foram deixados vários registros escritos que narram fatos e observações importantes sobre sua passagem por aquela galáxia.

O jogo começa com seu personagem acordando e sendo lembrado pelos NPCs que aquele era o dia da sua primeira viagem ao espaço – uma data muito significativa na vida de um lenhoso. Após passar por alguns tutoriais e entender as mecânicas básicas, você adentra o observatório para pegar os códigos de lançamento da sua espaçonave – quando algo muito estranho envolvendo uma antiga escultura Nomai acontece. Eis que você decola em seu pequeno veículo e o game te solta naquela galáxia, com total liberdade para explorar os planetas como bem quiser. Porém, a pegadinha acontece à exatos 22 minutos do início de seu playthrough – o sol se transforma em uma supernova e explode – aniquilando tudo e todos ao redor. E você morre. Só que não.

Seu personagem acorda exatamente no mesmo lugar do inicio, porém, assim como você (o jogador), ele está ciente de tudo que já havia acontecido. Você se dá conta que está preso num loop temporal – tal qual um dia da marmota – e percebe que está vivendo novamente os últimos 22 minutos que antecedem a obliteração da galáxia.

Daí pra frente é com você – o game te solta para você fazer o que bem entender. Existe um objetivo maior por trás de tudo, que envolve entender por que o sol explode e principalmente o que está provocando o time loop – mas a maneira como isso vai ser abordado fica à cargo do jogador.

O que chama mais a atenção em Outer Wilds é como é inteligente e fascinante o design do mundo. Cada um dos planetas (e respectivas luas) que compõe o sistema solar é absolutamente único, com suas próprias regras de física e sistemas de fenômenos naturais ocorrendo. É muito gostoso e gratificante descobrir cada um desses planetas e suas respectivas regras, entender como elas funcionam e como isso pode ser aplicado, no fim das contas, para resolver o grande mistério do jogo.

Porque tudo que você (o jogador) leva entre uma iteração e outra é seu aprendizado e conhecimento. Você não tem inventário, não tem upgrades nem faz alterações permanentes no mundo (a única coisa que permanece é um diário de viagens, útil para ajudar a lembrar o que já foi explorado e o que falta explorar). Teoricamente o jogo poderia ser zerado no primeiro loop de 22 minutos se você soubesse exatamente o que precisaria fazer – bastaria saber. E a busca por esse saber é uma das experiências mais gratificantes que tive em um jogo por muito tempo – e me lembrou de um dos meus jogos favoritos de todos os tempos, The Witness.

Não quero entrar muito no território do spoiler para não tirar o gostinho da descoberta do jogador, mas existe, por exemplo, um planeta que é oco por dentro – e tem um buraco negro em seu núcleo que suga as suas partes aos poucos. Um outro astro é um emaranhado de portais em que os objetos que o adentram estão em vários lugares ao mesmo tempo. Mas talvez o local mais fascinante de todos é a lua quântica, uma lua que simplesmente desaparece quando você tenta pousar nela e que a cada momento está orbitando um planeta distinto. O momento em que você entende como se comporta a matéria quântica nesse universo e consegue finalmente descobrir como pôr os pés na lua é um dos momentos mais memoráveis da história recente dos games.

E cada mundinho desses é absolutamente belíssimo de um ponto de vista artístico (embora os gráficos sob os aspecto técnico não sejam lá muito sofisticados). Frequentemente me deparei com situações que ao mesmo tempo me deixaram assombrado e extasiado. Houveram também momentos de pura admiração, de derrubar o queixo no chão e do mais profundo medo (embora passe longe de um jogo de terror). E aliado a esse design de mundo sensacional temos personagens interessantíssimos e absolutamente carismáticos, tanto os seus colegas lenhosos quanto os Nomai – dos quais você só fica conhecendo por meio de registros escritos, mas cujas histórias são riquíssimas. O jogo esbanja simpatia e você se vê tão apegado a esse mundinho e as essas pessoas que quando finalmente você descobre tudo o que precisava descobrir e chega no fim de sua jornada, não dá pra deixar de sentir uma certa tristeza por ter acabado. Fica aquele gostinho de quero mais.

Outer Wilds é também um primor técnico em vários outros sentidos, mas o destaque é como os seus sistemas trabalham. Em cada loop estão acontecendo eventos em tempo real em todos os planetas em simultâneo (isso, inclusive, é importante para o gameplay, pois muitas vezes você precisa estar no lugar certo na hora certa) o que significa que o sistema de física e geração de fenômenos do jogos está o tempo todo funcionando sem parar, não importa onde você está. Você pode estar no planeta X, e ao mesmo tempo vai ter um ciclone arrancando uma ilha do lugar no planeta Y – e se você não acredita que isso está acontecendo, pode deixar uma sonda fotográfica lá para conferir.

O design de som também é de primeira, e a música tem uma participação importantíssima – tanto na maneira que os lenhosos usam para se comunicar, quanto como o jogo te avisa de certas situações (a trilha que toca quando o loop está prestes a acabar é de uma lindíssima melancolia).

Outer Wilds é um jogo muito especial. Uma daquelas obras transcendentais, que fazem você ficar pensando nela o tempo o todo, mesmo quando não está jogando. É também uma experiência que vai ficar com você durante muito tempo depois de ter terminado. É uma obra-prima de design, de criatividade e feito com muito amor e paixão. Uma joia rara e um sopro de ar fresco em uma galáxia de milhares de jogos com recompensas vazias, onde tudo o motor de tudo é a curiosidade (e o coração) do jogador.

(obs: para quem tem Xbox One e assinatura no Game Pass, o jogo está disponível na biblioteca do serviço)


Classificação:


Outer Wilds

Plataformas: Xbox One, Windows e PlayStation 4
Produtora: Annapurna Interactive
Desenvolvedora: Mobius Digital
Diretor: Alex Beachum
Ano: 2019

Dario Lima

Dario Lima, além de ser faixa branca em todas as artes marciais e modalidades de combate conhecidas pelo homem, é também formado em Cinema. Mas sua verdadeira paixão são os joguinhos eletrônicos, desde que ganhou um Atari de presente do pai em uma época longínqua em que Menudo tocava nas rádios, Chevette era carro de playboy e McGyver passava na TV nas manhãs de domingo. Escreve sobre games na POCILGA e de vez em quando perturba os outros em algum episódio do Varacast.

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