Crítica | Clash (Eshtebak, 2016)

Crítica | Clash (Eshtebak, 2016)

Um dia, todos nós tivemos os mesmos sonhos?

A família Diab é uma família de cineastas. Mohamed Diab é casado com Sarah Goher, produtora. Seu irmão Khaled Diab é também roteirista. Mohamed já tem 7 longas no currículo. Dois deles – “Al-Gezira” e “Al-Gezira 2”- fazem parte de uma franquia bem-sucedida de ação e são filmes que tiveram a maior arrecadação na história do cinema árabe ou egípcio (em inglês “The Island” e “The Island 2”, o segundo com participação do seu irmão Khaled no roteiro). Mohamed também foi roteirista da primeira temporada de “Steps of Satan”, que discute mudança de personalidade pela influência das pessoas à sua volta e “pecados” como mentira, orgulho, ambição, inveja, que são todos supostamente causados pelo demônio.

É também uma crítica a seguir cegamente o islamismo, e o título da série é alusão a uma passagem do Corão, o 21º verso da 24ª surata (An Nur – A Luz): “Ó fiéis, não sigais as pegadas de Satanás; e saiba, quem segue as pegadas de Satanás, que ele recomenda a obscenidade e o ilícito. E se não fosse pela graça de Deus e pela Sua misericórdia para convosco, Ele jamais teria purificado nenhum de vós; porém, Deus purifica quem Lhe apraz, porque é Oniouvinte, Sapientíssimo”.

A estreia de Muhamed Diab na direção foi com “Cairo 6 7 8”, de 2011, um longa-metragem de ficção sobre assédio sexual contando a história de três mulheres, dentre elas Noha Roushdy, a primeira mulher do Egito a mover um processo de assédio. Ele acha que este filme, além de falar de assédio, é também sobre quebrar o silêncio, é sobre patriotismo e lealdade, e isso pode ter interferido de alguma forma para a revolução de 2011. A. O. Scott, do New York Times*1, concorda: “ ‘Cairo 6 7 8’ é um precursor da revolução, retratando vividamente como o velho sistema falha repetidamente em lidar com indignidades e frustrações diárias que sofrem os egípcios, as mulheres particularmente” (tradução minha).

Os irmãos egípcios participaram ativamente dos protestos da Primavera Árabe em 2011. Estiveram nas ruas exigindo a saída de Hosni Mubarak. As Forças Armadas, desgostosas com os rumos do governo do ditador – que era militar – aproveitaram o clamor popular e o depuseram. Em seguida, se aliaram à Irmandade Muçulmana – movimento fundado no Egito em 1928, existente em diversos países islâmicos, que pretende cortar as influências do ocidente e retomar as leis do Corão para as nações árabes – e organizam uma eleição.

Mohamed Morsi, da Irmandade, se torna presidente em 2012 – o primeiro eleito democraticamente na história do Egito. Seu mandato teve repúdio de diversos segmentos da sociedade e a crítica contra ele era generalizada. Assim, o novo chefe das Forças Armadas, Abdel Fattah al-Sissi, nomeado pelo próprio Morsi, deu um golpe de estado e o tirou do poder, fazendo um governo extremamente repressor e violento.

Clash

E é aqui que o filme se insere. O novo golpe de estado materializa nas ruas o conflito ideológico entre os que apoiam o golpe militar (ou a saída de Morsi da presidência) e os apoiadores da Irmandade Muçulmana. Nas palavras do próprio Mohamed Diab, numa entrevista para “The Spectator”*2: “É por isso que fiz este filme. O que aconteceu em 2011 foi o oposto de 2013. Em 2011 era sobre união; 2013, divisão. Esquecemos o quanto amávamos uns aos outros naquele momento. Esta é a mensagem secreta desse filme: lembrar aos egípcios que todos nós já tivemos os mesmos sonhos” (tradução minha).

Diab tenta mostrar como os egípcios são realmente o mesmo povo, com o mesmo amor pelas pessoas e mesmas questões pessoas, independente do lado político/ideológico a que se aproximem.

O filme já começa tenso, com protestos dos dois grupos nas ruas e a polícia intercedendo. Por acaso, pessoas dos diferentes protestos são presos no mesmo camburão. A partir disto se dá o desenvolvimento do filme: estas relações tensas e conflituosas num espaço tão pequeno e opressor. A ideia não é nova, (“12 homens e uma sentença”, “Um dia de cão”, “Quarto do pânico”, dentre outros) mas a roupagem se aproveita de acontecimentos contemporâneos para explorar de uma forma diferente esta premissa.

Embora os diálogos sejam, de forma geral, ingênuos e superficiais, o filme trata, através de conversas entre suas personagens, de diversos conflitos que extrapolam a questão política das passeatas – pai e filho, marido e mulher, machismo, amizade, hierarquia, privacidade e sexualidade.

A situação per si é tensa o suficiente, mas o filme não se passa num furgão estacionário. O carro da polícia se move na cidade, no meio dos conflitos, e as personagens têm que lidar não apenas com a pressão interna, mas também com a pressão externa. A interação com o mundo e com as passeatas importa bastante para o desenvolvimento da trama. Mesmo assim o filme é todo do ponto de vista dos presos no furgão, o que coloca em evidência a dificuldade de gravação, mas também a engenhosidade da direção e da direção de fotografia.

São 25 atores o tempo inteiro em cena, interagindo num espaço de 8 metros quadrados. Para que entendamos como isso é complicado, vou colocar aqui uma passagem da entrevista que Mohamed Diab concedeu a Tobias Grey, jornalista da “Screen International” *3: “Na última semana de filmagem parte do elenco teve crise de pânico e alguns fizeram terapia”.

Na mesma entrevista Mohamed conta que demorou dois anos desenvolvendo com o irmão a história, para que ficasse real. Ele diz que “é um filme contra ninguém”. E essa sensação está realmente presente no filme, quando o diretor nos apresenta não só a interação das personagens, mas suas personalidades.

Outro ponto forte do filme é a edição, que casa perfeitamente com a direção de fotografia, ajudando a criar o clima claustrofóbico do furgão sem tornar o filme num videoclipe entrecortado ou quebrar o quadro. Os atores conseguem passar bastante veracidade nos seus papeis e os conflitos e situações que se apresentam ganham força com as atuações.

Meu único porém com o filme, além dos diálogos fracos e do modo como acontecem as mudanças de temáticas discutidas, é a retratação da polícia. Mohamed se esforça bastante para mostrar a polícia como uma entidade não violenta, de modo geral, preocupada com o bem-estar dos presos, evitando usar força com a população. Achei isso não condizente com as notícias que temos da violência policial no Egito. Não sei se foi para não atrair problemas com a polícia, não sei se foi para não tirar o foco do conflito entre as personagens na van, não sei se foi para ter menos chances de haver censura do governo, mas isso chamou minha atenção. Contudo, não atrapalha a apreciação do filme.

É sempre muito interessante poder entrar em contato com outras culturas. O filme, egípcio, nos mostra um pouco de Cairo, seus habitantes, suas ruas, suas roupas, seus sotaques, seu árabe, suas tradições. Só por ser um filme egípcio já valeria assistir, mas este se mostrou um filme rico.


Uma frase: “Olho por olho, bala por bala.”

Uma Cena: A cena final, antes do desfecho, quando o espectador não tem certeza do que vai acontecer.

Uma curiosidade: Os muçulmanos do filme não aparecem fazendo nenhuma das suas cinco orações diárias, embora passem muitas horas presos na van.

 

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*1: The New York Times é um jornal diário fundado em 1851 na cidade de Nova Iorque.

*2: The Spectator é uma revista inglesa semanal fundada em 1828

*3: Screen International é uma revista inglesa sobre o mundo do cinema fundada em 1889 com o nome “Optical Magic Lantern and Photographic Enlarger”. O nome mudou para: “Cinematographic Journal” em 1900; “Kine Weekly” em 1907; “Today’s Cinema” e logo após “Cinema TV today”, em 1972; para o atual nome em 1975


Clash (Eshtebak, 2016)

Direção: Mohamed Diab
Roteiro: Khaled Diab, Mohamed Diab
Elenco: Nelly KarimHani AdelEl Sebaii MohamedAhmed Abdelhamid Hefny
Gênero: Drama, Thriller.
País e Ano: Egito, 2016
Duração: 97 minutos.
Graus de KB: 3: Nelly Karim atuou em Alexandrie… New York (2004) ao lado de Yousra El Lozy que esteve em Cada Um com Seu Cinema (2007) juntamente com Thanos (oops!), Josh Brolin, que por sua vez conquistou o universo atuou em O Homem Sem Sombra (2000) com  Kevin Bacon.



*Daniel Fróes, o convidado especial autor desse texto,
trabalha com audiovisual desde 2001. É multiclass Nerd/Desportista. Adora ler, jogar RPG, videogame e praticar esportes, mas não tem tempo pra nada disso. Fez faculdade de Física, de Filosofia, mas se formou mesmo foi na de Filme. Além de mestre de RPG, é mestre em Literatura e Cultura. Faixa preta em Crítica Totalizante (crítica de qualquer coisa), tem um gosto muito refinado (não gosta de nada) e é muito humilde (está sempre certo).


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Um comentário em “Crítica | Clash (Eshtebak, 2016)

  1. Boa tarde
    Alguém pode me enviar uma legenda em português para este filme.Tenho o filme mas só consegui a legenda em inglês mas o meu inglês é muito limitado.
    Agradeço desde já.
    Odair Rangel

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