Crítica | Ponte dos Espiões (Bridge of Spies, 2015)
Em Ponte dos Espiões (Bridge of Spies, 2015) Spielberg não se decide entre fazer um bom thriller de espionagem, um drama baseado em fatos reais ou uma crítica ao controle do estado e a paranóia do medo, e entrega um resultado apenas razoável, considerando o conjunto de sua obra.
É claro que estamos falando de um filme de Steven Spielberg, e não é possível dizer que se trata de um filme ruim. É bem possível que Spielberg seja fisicamente incapaz de fazer um filme que seja um completo desastre. Tecnicamente, ele é um monstro do cinema. Poucos sabem trabalhar tão bem fotografia, edição, trilha sonora, enquadramento e assim construir uma narrativa quase sempre sólida e envolvente. Difícil não deixar a sala de cinema após assistir a uma fita dele e dizer que o resultado foi completamente desastroso. Spielberg é como sexo ou pizza: até quando é ruim, é bom.
Ponte dos Espiões se propõe a contar uma história real. Esse costuma ser um bom começo. Principalmente nas mãos de cineastas como Spielberg. Mas o problema é que ao longo dos mais de 140 minutos de duração, o filme não sabe muito bem que história quer contar.
A princípio parece que veremos a história de Rudolf Abel (Mark Rylance, naquilo que, de longe, é a melhor interpretação do filme), imigrante ilegal de origem russa, preso em 1957 pelo FBI sob acusações de espionagem mas que, em meio ao clima de paranóia alimentado pelo governo e pelo macartismo durante a Guerra Fria, assiste impavidamente seus direitos fundamentais serem convenientemente descartados pelo sistema judicial americano, a fim de dar cabo àquele que eles consideram um inimigo.
Os EUA contudo estão comprometidos em ao menos manterem a aparência de justiça e legalidade, e por conta disso alistam o advogado James B. Donovan (Tom Hanks, sem qualquer brilho além do básico) para fazer as vezes de advogado de defesa de Abel. Jim, como prefere ser chamado, participou do Julgamento de Nuremberg pelo lado da acusação, mas naquele momento está satisfeito em ser um advogado de seguradoras, com uma imensa capacidade de negociar.
Mas Jim Donovan é também um idealista. E é preciso que se trace aqui com precisão os contornos desse termo. Jim acredita no “livro de regras”. Não no livro de regras da CIA e do Departamento de Justiça, que quer engendrar uma farsa de um julgamento apenas para poder executar aquilo que eles consideram um inimigo sem ser comparada ao regime totalitário comunista da URSS (ou melhor, os Russos, pois esses nomes de países são muito longos e difíceis de decorar). Seu “livro de regras” é a constituição dos EUA que, como ele faz questão de frisar, é justamente aquilo que diferencia a terra dos livres de outras nações do mundo. E de fato, a conquista e garantia dos direitos civis e fundamentais nos EUA sempre mereceu o respeito e a admiração de todos os povos. Poucos sistemas legais levaram tão a sério a noção de estado de direitos e a preocupação com a observância de princípios essenciais à este para se garantir a liberdade, a igualdade e enfim, a própria integridade da noção de justiça.
“My playbook. The Constitution.”
As regras do jogo e as regras do jogo
O idealismo de Donovan, assim, não é o de um ativista utópico, mas a convicção de um homem vivido e pragmático que é capaz de saber que a maior ameaça à civilização não são os comunistas que querem explodir o mundo com bombas nucleares, mas justamente a perversão de valores e princípios que são pilares do estado do direitos, e que garantem que não percamos qualquer pretensão de direitos ante a força descomunal da máquina estatal. Máquina esta que quando alimentada pela paranóia e pelo medo, ao buscar atalhos para pretensamente fazer o bem, acaba protagonizando as maiores e mais criminosas tragédias sob o manto frio da legalidade. Ele sabe muito bem disso. Afinal, ele esteve em Nuremberg.
E provavelmente Ponte dos Espiões seria mais um excelente filme de Spielberg se, a exemplo de Lincoln (2012), enveredasse por essa linha de contemplar sob sua lente delicada e emotiva a intricada relação que há entre indivíduos, direitos e estado desde que o estado moderno surgiu após as grandes revoluções do século XVIII nas quais os EUA tiveram grande protagonismo. Ou melhor dizendo, como é frágil essa relação, e como é importante que estejamos sempre atentos aos fundamentos desta relação para que não sucumbamos ao medo e à histeria interna que muitas vezes ameaçam muito mais o arduamente conquistado e construído estado de direitos – que sepultou o antigo regime absolutista – do que qualquer possível inimigo externo.
Spielberg perde uma excelente oportunidade de, a partir de uma história real, pintar com cores mais fortes e claras como a sua fotografia a imagem de um estado de direitos distorcido que se degenerou em um estado de polícia. Modelo este que hoje impera nos EUA e em boa parte do mundo, alimentados por um clima perene de terror e apreensão alavancado por interesses privados e governamentais que se favorecem com esse contexto, da mesma maneira que se dava com a ameaça nuclear durante a Guerra Fria.
O problema é que além de não conferir o devido aprofundamento a esse tema que é tão atual e instigante, Spielberg decide fazer do primeiro ato de seu filme, que trata de estabelecer a relação entre Jim Donovan e seu cliente e conta seu processo e condenação – com contornos muito similares ao drama Tempo de Matar (A Time to Kill, 1996), de Joel Schumacher – apenas uma espécie de longa introdução para a história que virá a se desenrolar a seguir. Introdução esta que, considerando o resultado final, é quase que desnecessária, ou exageradamente explorada, na melhor das hipóteses.
Uma ponte longe demais
Jim Donovan consegue salvar o seu cliente da execução não pelo argumento ético, mas pelo argumento utilitarista: mais cedo ou mais tarde um estadunidense será também preso acusado de espionagem, e um espião russo prisioneiro poderá ser útil. Donovan é um excelente advogado de seguros, e entende que ter sempre uma segurança é importante. De fato, não é tempo para discursos humanitários. Evidente que é esse cenário que eventualmente se apresenta quando o piloto de um avião espião U2 – sim, essa é a orgiem do nome da banda – o estadunidense Fracis G. Powers (Austin Stowell) é abatido em missão – numa cena que tem a tem a clássica assinatura de Spielberg, e é esplendidamente mostrada na telona, que inclusive já inspirou um outro filme em 1976 – e cai nas mãos dos soviéticos, sendo acusado de espionagem também.
Logo os EUA se movimentam para ter seu piloto de volta. Mas não por preocupações com seu cidadão. Mais uma vez a preocupação é utilitarista: a maior preocupação, e essa que assume a evidência ao longo dos dois atos seguintes do filme, é a de que os espiões prisioneiros de ambos os lados não cedam e passem informações ao lado inimigo. O medo e a paranóia pela segurança se afirmam definitivamente como superiores a qualquer valor humano ou mesmo de cidadania. E essa motivação é válida para ambos os lados.
Jim Donovan, assim, é surpreendido com uma carta da esposa de seu cliente espião. A Sra. Abel conta que conseguiu um advogado de nome Sr. Vogel, em Berlim Oriental, e que agradece pelo apoio a seu marido e quer saber notícias dele. Mas nem mesmo Rudol Abel corrobora que a carta tenha sido escrita por sua esposa. Para a CIA o fato da mensagem chegar logo após a prisão de Powers deixa tudo bem evidente; trata-se de um artifício do outro lado da cortina de ferro: a URSS está usando a recém formada RDA (República Democrática Alemã, ou Alemanha Oriental) como intermediário para entrar em contato com os EUA e sinalizar para uma possibilidade de negociação de prisioneiros, mas sem transparecer possibilidade de composição entre as superpotências. Como Donovan foi contatado por Vogel, ele é convidado pelo governo dos EUA e pela CIA a tomar a frente de uma negociação de troca de prisioneiros, que não deve em hipótese alguma ser feita através dos canais oficiais. Donovan deve atuar agora não apenas como advogado de Rudolf Abel, mas mais ainda como advogado de Francis Powers, garantindo que ele deixe a URSS antes que ceda e revele segredos de estado. O advogado de seguros e pai de família é lançado assim em um jogo de espionagem acerca do qual ele não conhece as regras.
Ou pelo menos é isso que deveria acontecer. Mas o diretor veterano também fracassa em impor um tom ao filme que o transforme em um interessante drama de espionagem, no nível de Jogo de Espiões, O Espião Que Sabia Demais ou mesmo de qualquer episódio das duas últimas temporadas de Homeland. O que de fato é uma grande pena, pois Spielberg teria plena capacidade de produzir uma excelente obra do gênero. E por não lograr êxito em assim fazê-lo, temos a sensação de que todo o primeiro ato foi um desperdício ainda maior. Afinal, se a primeira parte da narrativa deveria servir a pavimentar melhor o caminho para o segundo ato, bem, se esperava que ao menos nesse segundo ato o filme se apresentasse como sua verdadeira identidade. Mas não é isso que ocorre, como já dissemos.
E a história apenas fica mais difusa e perdida quando novos elementos são inseridos, como o estudante americano de economia que é detido pela polícia da RDA no dia da construção do muro de Berlim, e a tentativa da própria RDA em o usar para forçar os EUA a reconhecê-la como uma nação independente, e assim se fazer reconhecida internacionalmente. Mais uma faceta de uma história que, como toda história, de fato, possui inúmeras perspectivas, mas que como bem se sabe, cabe ao bom contador de histórias escolher a perspectiva mais apropriada para contar a sua história, da mesma forma que escolhe o ângulo exato para posicionar sua câmera. A única constante que se mantém ao longo de todo o filme é mesmo o personagem de Tom Hanks. Um advogado de fala mansa e como grande capacidade de convencimento, mas que usa essa habilidade em favor daquele que é certo, pode-se dizer.
A história que Spielberg parece querer contar – mas que ainda assim não se afirma também – é a desse homem persistente, que insiste em fazer a coisa certa, mesmo quando é constantemente lembrado por todos a seu redor que as regras do jogo mudaram, e que o que mais importa é escolher as peças certas para jogar o jogo. Ante a parante acidez de um mundo que quer se afirmar como pragmático e cínico às custas do reconhecimento de valores essenciais de todo e qualquer ser humano, Jim Donovan persiste. Para ele não há diferença entre um piloto de U2 e um estudante de economia. Ainda que o governo dos EUA prefira um ao outro, ele está disposto a não abrir mão de ninguém. Nem mesmo de Rudolf Abel, aquele que fora seu cliente, e que insistem que ele encare como inimigo, mas que ele compreende ser um cidadão também. Um cidadão como ele e qualquer outro, mas que foi colocado pelas circunstâncias do outro lado da cortina de ferro. Mas infelizmente Tom Hanks atua de forma preguiçosa, interpretando Tom Hanks, e não consegue imprimir qualquer profundidade a seu personagem que lhe confira maior destaque. Muito por isso o filme também falha em se sustentar nele.
Ponte dos Espiões, enfim, fracassa por não definir bem a sua identidade, e se apresentar ora como uma história de espionagem, ora como uma crítica aos deslizes da civilização ocidental ao abrir mão dos direitos que a constituem como tal a bem de uma pretensa sensação de segurança, ora como uma história, ora como um drama humanista de um advogado que é, acima de tudo, um homem persistente. Ainda assim é um filme de Spielberg, e isso já é motivo mais do que suficiente para ir ao cinema.
Título Original: Bridge of Spies
Título Nacional: Ponte dos Espiões
Gênero: Biografia/Drama/História
Ano: 2015
Duração: 141 min
Diretor: Steven Spielberg
Roteiro: Matt Charman, Ethan Coen e Joel Coen.
Elenco: Tom Hanks, Mark Rylance, Domenick Lombardozzi, Amy Ryan, Austin Stowell, Jesse Plemons, Dakin Matthews e Alan Alda.
Graus de Kevin Bacon: 2² (Tom Hanks trabalhou com Kevin Bacon em Apollo 13 e Kevin Bacon trabalhou dublando a voz do personagem principal em Balto, animação que teve produção executiva de Steven Spielberg.)
Depois que eu assistir comento melhor, mas Lincoln eu já acho burocrático e arrastado, se esse for ainda mais fica complicado. Mas a frase da pizza e sexo já valeu o texto. hahahaha
Esse filme tem uma vantagem, nesse ponto, com relação a Lincoln (e olhe que eu gosto muito mais de Lincoln): é mais fácil você se identificar com o personagem de Tom Hanks. Isso ajuda.
Eu ODEIO o Tom Hanks, e não gosto de nada do Spielberg há uns 20 anos… Mas sou fissurado por histórias de espionagem e a história real em q o filme foi inspirado é uma das minhas favoritas. Logo, estou numa situação difícil… Não sei se vou ao cinema ou não…
Olha… pelo que você disse… eu esperaria sair na TV. RS. Abraços e obrigado pelo comentário.
Saldanha, meu velho, seja bem vindo à Pocilga. Puxa uma cadeira aí, fica à vontade.
Agora aponta aqui nesse boneco onde foi que Tom Hanks te tocou.
O problema é AONDE ele não toca: No coração. Já reparou como ele sempre faz o papel de empresário, de funcionário de repressão do governo, de burocrata… Esse cara representa tudo q eu mais desprezo.
Eu gostei bastante do filme, daria 4 bacons. Se tivesse uns 30 minutos a menos e não exagerasse na “emoção” seria sensacional.
Kkkkkkkk. Acho que poderia ser por aí, também.