Crítica | Batman (The Batman, 2022)

Crítica | Batman (The Batman, 2022)

Matt Reeves conta a sua versão sobre Gotham, a vida de Bruce Wayne, e sua luta para se tornar o Batman

Em Batman (The Batman, 2022) o diretor Matt Reeves emprega toda a sua competência no domínio da linguagem do cinema para nos apresentar a sua visão de um dos mais conhecidos personagens dos últimos 80 anos. E é preciso ser justo: o resultado é de uma experiência cinematográfica de primeiríssima qualidade. Esse deveria ser o dado mais importante para motivar um bom apreciador do cinema (ou da arte em geral) para escolher (ou não) vivenciar tal experiência.

É preciso deixar isso demarcado, na medida em que vivenciamos tempos nos quais nada menos do que uma hipérbole, a qual nos agarramos com desmesurada paixão, é capaz de definir o que pensamos ou sentimos sobre determinadas coisas. E as coisas apenas têm valor na medida em as intensidades hiperbólicas de suas definições ultrapassam qualquer limite prévio, mesmo quando, e não raro, essa definição se dá antes da experiência.

The Batman, enfim, não é o melhor filme inspirado no personagem de história em quadrinhos criado por Bob Kane e Bill Finger há mais de 80 anos jamais feito. Tampouco entrega a melhor experiência cinematográfica de transposição da arte sequencial. Sequer pode ser considerado um filme de “super-herói”, a não ser que se utilize com muita frouxidão aquele termo. Na mesma medida, não faz qualquer sentido comparar o filme às produções do bem sucedido MCU, a não ser que para aderir à idiossincrática disputa de Marvel x DC que muito se assemelha ao comportamento entre torcidas no futebol. Mas nada disso deveria ser um critério relevante, como já apontado, para se avaliar The Batman.

O que talvez melhor defina o filme de Reeves é mesmo sua irresignação a se submeter completamente a qualquer categorização que comumente se relaciona aos filmes do já hoje conhecido subgênero de super-heróis. Claro, sabemos, Batman não é exatamente um super-herói. Mas também o sabemos que de fato ele o é, também. Debates a parte, Matt Reeves imprime em seu filme um tom que parece ser, em certo sentido, uma mudança de paradigmas – principalmente estéticos e de cinematografia – em relação a outras produções do subgênero. Em um movimento, não por acaso, algo similar ao Coringa de Todd Phillips, Matt Reeves decide – também, não por acaso, se inspirando em outra obra de Scorcese – simplesmente fazer um trabalho cinematográfico de excelência que tem como personagem principal um que surgiu como um “super-herói” de história em quadrinhos. E assim ele o faz, com a competência que já lhe é típica.

Um noir e um thriller de suspense policial em Gotham City

Matt Reeves se aproveita da já mencionada familiaridade quase que universal da audiência com seu personagem para contar uma história bastante própria e autoral. Se já é perda de tempo as já rotineiras, extensas e cansativas discussões ontológicas acerca de personagens adaptados, nesse caso é ainda menos frutífera. Isso porque Reeves emoldura, antes de tudo, sua obra como um thriller de suspense policial, muito inspirado em obras dos anos 90, e com um intenso clima noir, que ganha densidade e, contraditoriamente, vida, no pulsar das ruas da cidade de Gotham City.

Em conjunto com Reeves, Greig Fraser (diretor de fotografia) e James Chinlund (design de produção) criam uma Gotham City de uma beleza dura e transgressora que engolfa e corrompe todos a sua volta. É, sem dúvida, uma Gotham diferente de tudo que já vimos antes nas telonas, marcada por sombras bem definidas, mas ainda assim, nada cinzenta. A Gotham de Reeves evoca tons vermelhos e laranjas que contrastam de maneira bem definida com as sombras, criando um contraste esteticamente bem resolvido e eficiente na construção do ambiente que o filme exige. Gotham, aqui, é uma personagem muito bem definida e que dialoga com o público tanto ou mais do que o Batman de Robert Pattinson com suas narrativas em off.

Assim, a forma com que Reeves conduz a narrativa em seu The Batman, com controle total da cinematografia e design de produção, que com a inspirada trilha de Michael Giacchino tem sua chave de composição básica muito bem estabelecida, poderia ser equiparada, sem grandes problemas, as grandes apresentações autorais do personagem das Graphic Novels. Não por acaso, suas quase três horas de projeção passam despercebidas. A trama quase não nos dá momentos de distração, engatando sequências de eventos uma atrás da outra.

“Riddle me this”

Embora The Batman não possa ser equiparado aos grandes clássicos do cinema noir, particularmente no que diz respeito a seu roteiro, em alguns momentos, bastante expositivo, funciona muito bem como um suspense policial, principalmente nas interações entre Batman (Robert Pattinson) e o tenente Jim Gordon (Jeffrey Wright), que em determinados momentos (como bem percebe o ótimo Pinguim de Colin Farrell) lembra uma dupla de policias das mais estranhas. Por outro lado, a Selina Kyle (ainda não exatamente Mulher-Gato) de Zoë Kravitz assume, transgride e eleva o arquétipo de femme fatale do noir a um patamar que, com facilidade, pode ofuscar o Batman de Pattinson.

Mas o grande personagem do filme, além da já citada Gotham City, é mesmo o Charada do sempre talentoso Paul Dano. Não apenas por ser um personagem muito bem interpretado, mas também – ainda que recorrendo a uma série de clichés de referências dentro do gênero – por ser construído e apresentado de forma consistente dentro do roteiro. É ele, em diversos aspectos, a força motriz da narrativa.

É o Charada quem está no controle da situação e define o ritmo de cada acontecimento, fazendo do Homem-Morcego (como ele mesmo reconhece em determinado momento) apenas mais uma peça no jogo que o vilão, aqui elevado a serial killer, criou. Tudo é tão conduzido de forma tão aparentemente magistral que alguns podem se incomodar com a indefectibilidade do Charada, o que logo deixa de ser um problema quando a grande fragilidade do personagem é enfim revelada em seu embate final com o Batman.

“The Caped Crusader”

Dito tudo isso, talvez o trecho mais destoante de The Batman seja, de fato, o seu último ato. É naquele momento que, sem dúvida, o noir e thriller policial são deixados de lado em função da construção de um personagem que, finalmente, após anos agindo como uma sonâmbulo movido pela vingança, começa a despertar para si mesmo. Matt Reeves, afinal, sempre teve em mente uma trilogia, e não há dúvidas que ele pretende construir sua própria mitologia do Batman. Isso não significa dizer que The Batman não possa ser apreciado como uma experiência cinematográfica que se baste por si. Mas o Batman de Reeves, nesse momento, ainda está longe de ser o Batman que pode vir a ser, o famoso Cruzado de Capa (ou Caped Crusader) e o herói de Gotham City.

É assim bem evidente como Reeves apresenta da forma mais expositiva possível a diferença entre vingança e justiça. Algo que o seu Batman precisa aprender, a fim de tornar o herói que ele sequer imagina ser capaz de poder ser e de que sua cidade precisa. A trama principal, aliás, se sustenta na simetria entre Batman e Charada, como suas motivações, aqui, são tão similares e derivam da mesma fonte (o passado obscuro da cidade de Gotham) e o que de fato os separa. Não por acaso, ambos os personagens passam a extensa maior parte da projeção usando suas máscaras. Muito pouco vemos Robert Pattinson como Bruce Wayne e quase nada Paul Dano como o Charada. Isso não impede, como já dito, que ambos entreguem performances dignas de aplauso, precisas em cada olhar, respiração e tom de voz.

Sob sua máscara, Batman é uma figura atormentada e perdida, apenas reagindo à mágoa e a perda, descontando sua dor ora machucando jovens delinquentes ora aqueles que estão mais perto dele, como o faz com o Alfred de Andy Serkis. Ele ainda não é muito mais do que um playboy problemático que se veste de roupa de couro preto para sair à noite e agredir fisicamente aqueles que ele considera que são criminosos. Um vigilante, mesmo, na pior acepção do termo. E tão destoante de tudo que existe a sua volta que, mesmo na noite de Halloween, sua presença não se acomoda ao ambiente a sua volta. O Batman de Reeves apenas está confortável nas sombras, e o trabalho de fotografia consegue nos mostrar isso de forma destacada e impressionante, como já sugeri acima. Por outro lado, quando Reeves o traz para a “luz”, ou melhor dizendo, para o meio de outros personagens, como os policiais de Gotham, por exemplo, é impossível não sentir um estranhamento diante daquele maluco andando com capa e capuz com pontas em meio as pessoas normais.

Vingança e Justiça

Não por acaso, é apenas no último ato que Reeves irá resolver esse contraste, na medida que as ações de Batman o aproximam mais das pessoas de Gotham, algo que também define a cidade, mas que para ele foi sempre uma face oculta. É ali que se delimita a fronteira, para Reeves, entre um vigilante e um herói, entre vingança. É ali que vemos o Caped Crusader começar a nascer (e acredite, nunca, e aqui digo sem temer hipérboles) nunca as contradições de o valor de um capa foram tão bem exploradas no cinema. Talvez, me alguns momentos, falte mesmo sutileza; mas o impacto visual, sem dúvida, vale o preço da exposição.

Assim o que temos no último ato é o fechamento de um “drama de formação” proposto por Matt Reeves, e que encapsula o noir e thriller policial, os colocando “apenas” como elemento adicionais de um horizonte mais amplo. Porém, na mesma medida em que o impacto visual de uma capa usada como uma alegoria de forma tão expositiva possa ser perdoado, talvez valha a pena abrir um pouco a mão do valor de um genuíno noir em função da narrativa de construção de um herói.

Um herói, diga-se de passagem, bastante diferente de todos que já vimos até hoje. Aqui, também, não há hipérboles, e nem valor em si por isso. Mas é certo que o tom do filme de Reeves, como já ficou claro, assume um todo próprio que empresta para si elementos de vários gêneros consagrados do cinema, para contar a sua história, uma velha história, sim, mas sob um olhar novo, sobre o personagem de mais de 80 anos, mas que não cansa de se reinventar, sem contudo, se corromper.


Uma frase: “Quem eu quero enganar. Você já está comprometido.”

Uma cena: Batman como uma tocha na escuridão do povo de Gotham.

Uma curiosidade: Matt Reeves escreveu sua versão de Bruce Wayne tendo como referência o cantor Kurt Cobain. Reeves declarou que, enquanto escrevia a primeira parte do roteiro, ouvia frequentemente Nirvana. Para ele, o Bruce Wayne em questão, antes de ser um playboy quer servia como máscara para o Batman, era um jovem recluso traumatizado por uma grande tragédia. Não por acaso, a música Something in The Way, do Nirvana, está presente dando o tom do filme.


Batman (The Batman)

Direção: Matt Reeves
Roteiro: Matt Reeves e Peter Craig
Elenco: Robert Pattinson, Zoë Kravitz, Paul Dano, Jeffrey Wright, Colin Farrell, Andy Serkis e John Turturro
Gênero: Ação, Policial, Supense, Drama
Ano: 2022
Duração: 175 minutos

Mário Bastos

Quadrinista e escritor frustrado (como vocês bem sabem esses são os "melhores" críticos). Amante de histórias de ficção histórica, ficção científica e fantasia, gostaria de escrever como Neil Gaiman, Grant Morrison, Bernard Cornwell ou Alan Moore, mas tudo que consegue fazer mesmo é mestrar RPG para seus amigos nerds há mais de vinte anos. Nas horas vagas é filósofo e professor.

Um comentário em “Crítica | Batman (The Batman, 2022)

  1. Confesso que gostei mais do filme do que deveria por ser fã do Batman, mas é realmente um ótimo filme. Não precisava ter 3 horas, tem personagens demais e mesmo longo não consegue apresentar tudo que deveria.

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