Crítica | Dunkirk (2017)
O que é preciso para se fugir do inferno?
Há um sombrio e irônico paralelo entre a Segunda Guerra Mundial e o ato de trazer uma vida ao mundo que muito pouca gente se dá conta.
O que quero dizer é que desde a declaração de guerra formal entre os principais atores do conflito na Europa – França, Inglaterra e Alemanha – e os sangrentos embates que deixaram marcas indeléveis por todo o mundo, efetivamente cerca de oito meses se passaram. Praticamente o período de uma gestação humana, portanto.
Da Guerra de Mentira ao Banho de sangue
Assim, de 3 de Setembro de 1939 – quando a guerra foi formalmente declarada – a 10 de Maio de 1940, como que numa arrastada preparação de um jogo de tabuleiro, o que houve principalmente foi uma movimentação de tropas com quase nenhuma batalha. Não por acaso esse período ficou marcado pela história como Guerra de Mentira (phoney war).
Nesse cenário, deslumbrados pela pretensa eficiência da Linha Maginot, soldados franceses e ingleses desfrutaram alguns meses de paz e tranquilidade na França. Era praticamente uma espécie de colônia de férias, principalmente para os jovens – jovens mesmo, em média com 17 anos – ingleses em terras francesas. Assim, é de se imaginar o tamanho do sobressalto dos aliados ao perceber que, do dia para a noite, os Alemães haviam chegado sobre eles.
A Linha Maginot, claro, se mostrou um dos maiores fracassos militares da história. As tropas alemãs, apoiados pela eficiência devastadora das divisões panzer e a precisão inclemente da Luftwaffe, empurraram centenas de milhares de soldados aliados ao longo do norte da costa francesa e da Bélgica.
A maior parte dos soldados franceses e ingleses se viu acuada na cidade de Dunquerque (ou Dunkirk, na versão original britânica, grafia que foi mantida no título do filme no Brasil, e usaremos, assim, ao longo de todo o texto), a pouco mais de 30 km de Dover, do outro lado do canal da mancha, a uma distância quase que não escondida pela linha do horizonte. Assim, em 26 de Maio de 1940, a Operação Dínamo que coordenava a heróica retirada de Dunkirk teve início.
Operação Dínamo
A retirada de Dunkirk, sobretudo, foi um ponto de virada na guerra e despertou finalmente os aliados para os verdadeiros riscos. Naquele momento o terror se tornou palpável e cobrou um duro custo de inúmeras famílias britânicas e francesas. E isso acabou galvanizando e unindo toda uma nação, a Grã-Bretanha, em torno de um único ideal: deter, em nome do mundo livre, o avanço da Alemanha nazista.
Não é difícil perceber a importância de Dunkirk no imaginário popular britânico. A retirada jamais foi vista como um ato de fracasso, mas um símbolo de resiliência, cooperação e sacrifício. Assim, não surpresa que essa história tenha sido contada nas mais diversas mídias por diversas vezes.
A Operação Dínamo já havia sido adaptada no cinema no filme O Drama de Dunquerque (1958) de Leslie Norman. Coube ao cineasta Christopher Nolan recontar essa impressionante história para as novas gerações. Nolan, apesar de criticado por muitos, é inegavelmente um virtuoso que domina a técnica narrativa na sétima arte como poucos na atualidade.
Assim, Nolan, provavelmente inspirado no mestre Richard Attenborough e na sua obra-prima Segunda Guerra, Uma Ponte Longe Demais (1977), opta por colocar todo seu domínio da técnica a serviço de contar uma narrativa a partir de três perspectivas: terra, mar e ar.
Uma semana, um dia, uma hora
Aliás, não apenas de simplesmente três perspectivas. Nolan, como bem sabem seus fãs e detratores, é audacioso o suficiente para não se permitir ser simples.
Repetindo uma marca que lhe característica de explorar o tempo como elemento constitutivo da narrativa, Nolan decide imprimir às três perspectivas ritmos cronológicos distintos.
Logo no início, no único momento expositivo da película, Nolan anuncia aos espectadores que cada perspectiva se desenrolará ao longo de um período de tempo específico: terra, uma semana; água, um dia; ar, uma hora. E isso é tudo.
A partir daí, sem recorrer a um diálogo expositivo sequer – insisto nesse ponto por entender ser uma qualidade em um cinema cada vez mais repleto desse recurso, que serve apenas para ressaltar a indigência intelectual tanto de realizadores quanto de audiência – Nolan apresenta sua narrativa em um estilo quase que documental. Mas isso demanda também uma atenção por parte do espectador que não é exatamente atributo corriqueiro nas audiências atuais. Ainda assim o exercício é satisfatório. Parece que, ao exigir nossa atenção, Nolan reforça o sentido de urgência e apreensão que perpassa toda a película.
O diretor ainda lança mão de todos os recursos possíveis da linguagem cinematográfica e inovações técnicas a seu alcance nessa empreitada. Aposta em câmeras na mão, em ângulos abertos a partir de um ponto de perspectiva recuado para fora da tela, de uma fotografia cinzenta, e de um controle de elementos de cena e de edição que nos mantém totalmente circunscritos na história.
Merecem destaque, a propósito, as sequências de combate aéreo. Nelas Nolan demonstra um domínio de misancene que é cada vez mais raro hoje em dia. O diretor também optou por filmar as sequências recorrendo às melhores tecnologias de câmera. Infelizmente não tivemos a oportunidade de assistir à fita na sua versão IMAX 3D, porém, não é difícil imaginar o quão incrível deve ser o resultado nessas telas.
É curioso notar que, justamente por entender que a história tem uma força em si que dispensa comentários, o diretor prefira meio que se colocar de lado e deixar seu personagem principal, a história, brilhar sozinha. Assim, temos a todo tempo a sensação não se estar dentro, mas porém muito próximos. É como se fôssemos colocados no ombro de gigantes e observássemos, com o devido respeito, o desenrolar daquele marcante episódio da segunda guerra mundial.
A fina linha entre o céu e o inferno
É bem significativo dessa opção perceber que em momento algum os soldados nazistas surgem em tela. Com exceção da presença dos caças da Luftwaffe – que ainda assim se dá de forma bastante econômica – o tempo inteiro a força nazista é apresentada apenas através de tiros e da artilharia que massacram os aliados. Isso, além de elevar a ameaça a um registro quase que transcendental, garante que tudo transcorra exclusivamente do ponto de vista dos britânicos. Sua principal luta não é contra os nazistas, mas sim uma luta desesperada pela sobrevivência. Desde a primeira sequência, afinal, vemos jovens soldados britânicos sendo caçados por salvas de tiros nazistas.
Os ataques incessantes dos nazistas e os sucessivos fracassos dos jovens soldados em tentar deixar a praia de Calais nos fazem imediatamente fazer um paralelo com uma tentativa desesperada de fugir do inferno. A praia de Dover, o outro lado, sempre visto pelos personagens mas jamais apresentados à audiência – pelo menos não até os momentos finais – ocupam o espaço que a outra margem do rio Estígia teria para os mortos. A música de Hans Zimmer – insistindo aqui nas notas altas e intensas – tente ampliar essa tensão, porém acaba por vezes sobrando um pouco e saindo do tom, em nítido descompasso da proposta do diretor.
Todo esse ambiente, ainda que não comporte muitas surpresas em matéria de roteiro, garante a manutenção da tensão ao longo de todos os humildes 107 minutos da fita. As atuações – muito boas, por sinal – por vezes ficam em segundo plano, dando espaço para que a força daquele drama se apresente em toda sua dimensão. Por isso também, talvez, Nolan tenha preferido trabalhar, na maior parte do tempo, com jovens e pouco conhecidos – porém, bastante talentosos – atores.
Mais do que uma narrativa, enfim, Nolan nos apresenta uma descrição da ao mesmo tempo desesperadora e triunfal retirada de Dunkirk. E, como parece ser típico dos grandes artistas, essa dualidade aparentemente contraditória é transposta com imenso sucesso em cada frame da película.
Dunkirk(2017) talvez não esteja a altura de grandes clássicos como Uma ponte longe demais, ou Patton – Rebelde ou Herói? (1970). Porém, com um apuro técnico notável, e a inteligência de fugir de preferir um estilo mais austero e seco à típica grandiloquência verborrágica a que tipicamente se recorre em filmes dessa natureza, Nolan nos traz um relato sincero, honesto, autêntico que permite tocar a cada um da forma que a si melhor se adequa. Assim, ele também valoriza e honra uma das mais importantes histórias da segunda guerra da melhor forma possível: ficando de lado e deixando que ela fale por si só, se apresentando como foi em sua dolorosa essência.
Uma frase: “Você quase pode ver daqui.”
Uma cena: O soldado lê o discurso de Churchill no parlamento. O mesmo discurso que está na introdução da música Aces High, do Iron Maiden.
Uma curiosidade: Richard Attenbourough, diretor de “Uma ponte longe demais”, que foi uma das inspirações para Nolan, e é um marco definitivo dos filmes de Segunda Guerra Mundial, atuou na primeira adaptação cinematográfica da batalha de Dunquerque (O Drama de Dunquerque ); curisoamente também, seu neto, Will Attenborough, está no elenco da versão de 2017 de Dunkirk no papel de um segundo-tenente.
Dunkirk
Direção: Christopher Nolan
Roteiro: Christopher Nolan
Elenco: Fionn Whitehead, Damien Bonnard, Jack Lowden, Harry Styles, Cillian Murphy, James D’Arcy, Kenneth Branagh, Mark Rylance e Tom Hardy.
Gênero: Guerra, História, Drama.
Ano: 2017
Duração: 106 minutos.
Graus de KB: 2 – Tom Hardy atuou em O Espião Que Sabia Demais (2011) ao lado do imortal John Hurt (o 9º Doutor!) que esteve em O Carro de Jayne Masfield (2012) com Kevin Bacon.
Man, o filme foi lançado só em IMAX, não teve 3D.
Realmente o que mais chama a atenção no longa é a parte técnica que é muito boa. Só a trilha me incomodou um pouco em alguns momentos por insistir em temas “tensos”, sendo que um silêncio funcionaria muito melhor.
O roteiro é meio irregular, os personagens não são muito interessante e parece mesmo um “documentário” em algumas partes.
É um bom filme, mas eu prefiro Nolan “racional” do que o “emocional”. Aqui ele parece querer dar uma de Spielberg. Só faltou aparecer a bandeira da Inglaterra no final. kkk