Crítica | Entre Mulheres (Women Talking)
“Toda opressão cria um estado de guerra”, dizia Simone de Beauvoir, intelectual que influenciou a primeira grande onda do movimento feminista na década de 1960. Essa reflexão é um ponto de partida para entender Entre Mulheres, dentro da narrativa ficcional e fora dela. O filme é baseado no livro Women Talking – cuja história é inspirada em fatos reais ocorridos numa colônia religiosa ultraconservadora isolada. O roteiro pode ser interpretado como uma alegoria dos acontecimentos e desdobramentos do movimento Me Too em Hollywood e ainda como um dos produtos naturalmente derivados dessa iniciativa.
No longa, as mulheres descobrem que eram dopadas e estupradas por homens da comunidade e que essa violência era normalizada e defendida pelos líderes do grupo sob o argumento de que eram provocadas por entidades diabólicas. Elas decidem que precisam tomar alguma atitude. As opções: não fazer nada e perdoar, ficar e enfrentar os homens ou partir em busca de uma vida nova longe do local. Uma votação se inicia e, diante de um resultado que permanece incerto, as representantes das principais famílias da aldeia se reúnem para pensar, avaliar e discutir os prós e os contras de cada uma das alternativas.
Mulheres de personalidades diversas compõem esse primeiro escalão que definirá o futuro de todas do grupo. Enquanto debatem, todos os relatos são valorizados e acolhidos. Ao mesmo tempo em que filosofam sobre futuro, elas também visitam o passado e o presente de suas opressões cotidianas, se confrontam consigo mesmas, e se permitem embarcar numa jornada curta e urgente de autoconhecimento. São mulheres que representam perfis da vida real que, com a atuação primorosa do elenco, estabelecem com o público um pacto sincero de afeto, lealdade e zelo, onde não há espaço para julgamentos, como numa grande analogia ao que chamamos de “sororidade” feminina.
A direção escolhe contar essa história por meio de uma narração, alternando as cenas de diálogo, com flashbacks e imagens de garotas correndo e brincando nos campos. A sensibilidade é presente, principalmente, nos cortes de câmera que revelam ao espectador os abusos sofridos pelas meninas. Ao contrário do que estamos acostumadas a ver nas telonas, neste filme, feito por mulheres, a violência pela violência não é usada como recurso narrativo e muito menos como elemento de construção e desenvolvimento de personagens.
O filme se destaca pelo texto brilhante e certeiro. Os diálogos densos e as dolorosas reflexões sensibilizam pela profundidade e, surpreendentemente, vencem o desafio de se manterem interessantes ainda que se passem, quase todo o tempo, num mesmo cenário noturno. Aliás, a iluminação natural do longa e a paleta com saturação bastante azulada compõem uma belíssima e incômoda fotografia, que refletem a confusão mental das personagens e o estado de nebulosidade e incerteza sobre o desfecho do grupo. A razão de aspecto da produção é mais fina para não “sufocar” o espectador, num recurso similar ao utilizado por Tarantino em “Os Oito Odiados”, que também era ambientado, a maior parte do tempo, em local fechado.
Os eventos do filme se baseiam no caso verídico ocorrido numa comunidade menonita boliviana em 2005, mas poderia ser em qualquer lugar do planeta, em qualquer época. O que Entre Mulheres busca é lançar um olhar terno e esperançoso sobre essa geração de corajosas moças para além da condição de vítimas. Elas se reconhecem em suas individualidades, em seus dilemas particulares, mesmo que atuando em coletivo. O longa reforça que, apesar de feridas, elas só sobreviverão se, juntas e unidas, buscarem se proteger num mundo em que homens são educados para as subjugar, violentar e matar.
Uma frase: “Vou me tornar uma assassina, se eu ficar”.
Uma cena: A mãe de Mariche pedindo perdão por tê-la convencido a se conformar com as sucessivas violências do marido.
Uma curiosidade: A escolha da música “Daydream Believer” – que toca no carro que percorre a propriedade chamando os membros da colônia a participarem do censo populacional – tem um significado temático: faz referência a uma mulher sonolenta (“sleepy Jean”) emergindo de um devaneio. E, no filme, mulheres foram atacadas durante o sono e estão saindo de um pesadelo.
Entre Mulheres (Women Talking)
Direção: Sarah Polley
Roteiro: Sarah Polley e Miriam Toews
Elenco: Rooney Mara, Claire Foy, Jessie Buckley, Frances McDormand, Judith Ivey, Liv McNeil, Michelle McLeod, Kate Hallett, Sheila McCarthy, Kira Guloien, Shayla Brown, August Winter e Ben Whishaw
Gênero: Drama
Ano: 2022
Duração: 104 minutos