Crítica | Marighella

Crítica | Marighella

“Celebração à resistência e um manifesto contra a onda conservadora propagada no Brasil e no mundo”. É assim que Eduardo Pereira, do canal Omelete, define o filme Marighella, dirigido e roteirizado por Wagner Moura. O filme, que teve 88% de aprovação da crítica, de acordo com o site especializado em cinema, Rotten Tomatoes, é inspirado na biografia escrita pelo jornalista Mário MagalhãesMarighella – o guerrilheiro que incendiou o mundo. O longa, lançado no Brasil no dia 4 de novembro – data dos 50 anos do assassinato de Carlos Marighella pela repressão militar – conta a história dos últimos anos do guerrilheiro comunista tido como terrorista e inimigo número 1 do regime ditadorial brasileiro. O filme apresenta ótica jamais vista antes: a do oprimido e não a narrativa oficial do opressor.

Explosivo, polêmico e produto de uma série de dificuldades advindas da estrutura precarizada da produção de audiovisual brasileira, a película de Moura traz personagens estruturalmente complexos, a começar pelo protagonista, Carlos Marighella, estrelado pelo ator e cantor Seu Jorge. Indagado sobre o motivo de ter escolhido um “não ator” para estrear o longa, Moura relata que Seu Jorge é um artista completo. “ Ele é a pessoa mais talentosa que eu já conheci. Eu nunca vi uma pessoa tão abençoada com talento quanto ele”, afirmou o diretor durante entrevista no programa Roda Viva, da TV Cultura. 

Na mesma entrevista, Moura relatou que  inicialmente escalou o rapper Mano Brown para o papel de Marighella por entender que Brown representa, simbolicamente, o que o guerrilheiro era e é. “Tenho muita admiração pelo Mano Brown e ele é muito parecido com Marighella. Brown também é um poeta. Os dois são filhos de mulheres pretas com homens brancos”, afirmou o diretor. Entretanto, a agenda de shows do grupo Racionais MC´s, do qual Brown é integrante, não permitiu que o cantor participasse das gravações. 

Com movimentos de câmera inquietos, Moura revela que dirigiu o longa como ele gosta de ser dirigido: sem muitas posições de enquadramento, buscando respeitar o fluxo da cena, sem muitas interrupções. “É claramente um filme dirigido por um ator (…). Eu poucas vezes ficava no monitor e sim com eles, ali dentro da cena, tomado pela mesma energia que contagiava os atores”, relatou. Isso faz com que a fotografia esteja sempre muito próxima dos atores em cena, quase como se fosse o próprio Wagner Moura dentro do filme. 

Há uma curiosidade sobre a derradeira cena do longa-metragem (Alerta de Spoiler!). Na tela, o grupo liderado por Marighella aparece cantando o Hino Nacional Brasileiro. Moura revelou que tratava-se apenas de um exercício criado pelos atores para se conectar aos personagens. Porém, ele achou a entrega dos artistas tão intensa que pediu para filmar. Além disso, o diretor passou um bom tempo sem saber onde iria encaixar a cena.

Personagens Complexos

De acordo com Wagner Moura, a intenção do longa não é canonizar Carlos Marighella. O objetivo é trazer às telas de cinema toda a complexidade do líder da Ação Libertadora Nacional (ALN), que acreditava que a violência era o único caminho contra a violência do regime ditatorial. Durante os 21 anos de ditadura, estima-se que aproximadamente 20 mil pessoas foram torturadas, de acordo com a organização não governamental Human Rights Watch. 

Além da atuação potente de Seu Jorge, o filme também entrega atuações viscerais com destaque para Bruno Gagliasso, no papel de delegado Lúcio, e Humberto Carrão, como guerrilheiro mais radical do grupo de Marighella. Adriana Esteves, mesmo com pouco tempo de cena, fica gigante ao viver a mulher de Carlos Marighella, Clara Charf, cuja escolha foi a de não seguir o marido na luta armada contra a ditadura militar. Destaque interessante sobre o personagem de Gagliasso é que, ao contrário de Marighella, o delegado Lúcio aparece desprovido de profundidade, representando o próprio sistema opressor golpista, sem caráter, racista e sádico. 

O pastor Henrique Vieira interpreta um frei dominicano cujo nome também é Henrique. A participação de Vieira assume importância simbólica para além da simples atuação. Vieira, que é pastor da igreja Batista do Caminho, também é poeta, professor, ex-vereador e militante de direitos humanos, representa o progressismo religioso que o mundo merece e que de fato luta por justiça social. O destaque vai para a cena (Alerta de Spoiler!) em que Henrique fala sobre Jesus de fato ser negro e como a retratação de um Cristo branco atendia aos interesses dos colonizadores. 

Boicote

Rodado em 2017, Marighella enfrentou toda sorte de dificuldades, desde embates com a Agência Nacional de Cinema (Ancine) a ataques virtuais. O filme encarou milícias digitais em sites de cinema como o IMDB, onde mais de 36 mil (72% dos avaliadores) deram 1 estrela para o filme antes do longa estrear. “Isso tudo diz muito mais sobre os estados das coisas no Brasil hoje do que propriamente o filme que eu fiz”, conta o diretor. “Eu fiz um filme sobre um personagem histórico. Você não precisa gostar de Marighella para assistir ao filme. Você não precisa nem mesmo ir ver o filme. Mas você não pode trabalhar para que um produto cultural seja interditado e que esse debate sobre o filme seja interditado”, frisou Moura.

O filme sofreu censura pelo órgão que mais deveria apoiar produções nacionais, a Ancine. Segundo o diretor, o filme foi contemplado com o Fundo para Complementação de Produção e não recebeu a verba. “Isso aconteceu em um momento em que o Governo Federal falava abertamente em filtragem de conteúdo”, denunciou Moura. 

Mesmo com todas as dificuldades durante e após a montagem do filme, Moura insistiu que o longa-metragem fosse exibido nas salas de cinema brasileiras e não em streaming. De fato, Marighella é um filme que precisa ser assistido nas telonas e pelo maior número de telespectadores possível.  A película é, por si só, um ato de resistência ao momento atual em que o país vive, sob o governo ultra conservador e com tendências fascistas. Um governo que se elegeu com o apoio de uma classe média hipócrita, racista, homofóbica e que faz qualquer coisa para permanecer com privilégios burgueses. Mas ainda há os que resistem como Moura e como tantos outros dentro e fora da esfera cultural.  Não à toa que, ao final do longa, houve aplausos e sonoros “Fora Bolsonaro!” dentro da sala de cinema. 


Uma frase: – Marighella: “Eu não tenho tempo pra ter medo”.

Uma cena: Tortura do personagem Jorge com eletrochoque e agentes do Dops cantando “roda, roda, roda, roda e avisa”

Uma curiosidade: Bruno Gagliasso não foi convidado a fazer o personagem. Ele soube do filme e pediu para Wagner Moura deixá-lo fazer o teste para o personagem do delegado Lúcio.


Marighella

Direção: Wagner Moura
Roteiro: Felipe Braga e Wagner Moura
Elenco: Seu Jorge, Adriana Esteves, Bruno Gagliasso, Luiz Carlos Vasconcelos, Humberto Carrão, Jorge Paz, Bella Camero, Herson Capri, Henrique Vieira, Ana Paula Bouzas, Adanilo, Ana Paula Bouzas, Tuna Dwek, Guilherme Lopes, Rafael Lozano, Charles Paraventi e Brian Townes
Gênero: Ação, Drama, História
Ano: 2019
Duração: 155 minutos

Elaine Fonseca

Jornalista, servidora pública e nerd.

2 comentários sobre “Crítica | Marighella

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