Crítica | Bela Vingança
O que fazer quando passar por um trauma na vida? Tentar seguir em frente e superar, ou tentar fazer algo para que o mesmo não se repita com outras pessoas? Esse é o drama de Cassie Thomas, protagonista de “Bela Vingança”, uma mulher de 30 anos que parece perdida e sem rumo. Ela trabalha em um café e não tem muita ambição. Exceto por algo que é a sua motivação em continuar viva: se vingar dos homens.
Seu plano consiste em fingir-se de bêbada em algum bar ou boate, enquanto aguarda a “ajuda” de algum “cidadão de bem”. Não falha, toda noite surge um “bom samaritano” para ajudar, mas que na verdade quer se aproveitar da vulnerabilidade da moça para fazer sexo com ela. Então na hora que o estupro vai acontecer a protagonista “acorda” e assusta os homens, com objetivo de dar uma lição para que nunca mais façam isso. Mas o que teria acontecido com Cassie para que ela resolvesse se arriscar tanto para colocar esse plano em prática?
Nesse ponto a diretora e roteirista Emerald Fennell é muito inteligente ao construir a narrativa apresentando poucos detalhes sobre o passado da protagonista. Dessa forma o espectador usa a sua imaginação e provavelmente imagina o pior. Além disso, essa forma “genérica” de apresentar os fatos ajuda também o público a se identificar mais facilmente com a trama, ajudando na imersão dentro de “Bela Vingança”. Outro detalhe interessante é que as palavras estupro e assédio sexual, por exemplo, nunca são ditas durante o longa, mas fica explcitico nas “entrelinhas” que é disso que o filme se trata.
Sabemos que Cassie foi uma estudante de medicina e que algo aconteceu com uma grande amiga chamada Nina. O ocorrido a abalou profundamente, principalmente após a morte de Nina, que também não tem detalhes explicados sobre o que aconteceu, mas assumimos que ela não conseguiu lidar com esse trauma do passado. O impacto na protagonista também foi devastador, visto que ela abandonou a faculdade e decidiu colocar em prática seu plano de vingança.
Essa vingança pode ser interpretada como uma forma de “militar”, isto é, se dedicar a lutar por uma causa. Para as mulheres que lidam diariamente com machismo, assédio e coisas do tipo no seu cotidiano, essa “militância” é praticamente uma forma de sobrevivência. Mas o quanto elas devem tentar “abstrair” e seguir com a normalidade da vida ou o quanto elas tem que lutar para que isso não continue acontecendo? E como fazer essa luta? Esses são pontos fundamentais que a diretora Emerald Fennell nos faz refletir em seu filme.
Para nós homens também é fundamental assistir “Bela Vingança” para fazer essa reflexão do ponto de vista masculino. Com certeza conhecemos alguma história parecida de alguém que se aproveitou de alguma mulher que estava em uma situação de vulnerabilidade. Esse tema continua extremamente relevante e urgente, então é bom citar, por exemplo, o podcast Praia dos Ossos e a edição do Varacast sobre ele, onde discutimos sobre o assunto.
Voltando para o filme, em determinado momento a protagonista encontra um ex-colega da faculdade e tem a oportunidade de construir com ele um futuro feliz, mas ao mesmo tempo esse reencontro faz com que Cassie reviva os traumas do passado e resolva colocar em prática uma nova fase do seu plano de vingança.
Nesse ponto, “Bela Vingança” acerta mais uma vez em mostrar como as pessoas muitas vezes só aceitam determinadas coisas quando sentem na pele. Assim a protagonista, ainda que de maneira “forçada”, consegue tirar um pouco de sororidade de outras mulheres. Afinal de contas, quando elas também “passam o pano” para o comportamento abusivo masculino, elas estão sendo coniventes com o que ocorreu.
Para funcionar muito bem, além de uma excelente direção e roteiro realizados pela estreante Emerald Fennell, “Bela Vingança” conta com a excepcional atuação da protagonista Carey Mulligan. A atriz desenvolve muito bem a personagem, mostrando um sarcasmo fantástico. Mesmo sendo uma mulher forte, lidar com esse trauma não é fácil, então é interessante ver sua coragem em colocar o plano de vingança em prática, mesmo com diversos riscos envolvidos. É uma mulher que não tem nada a perder, a não ser a própria vida, mas que está disposta a isso em nome da amiga e também de todas as mulheres que passam (ou passaram) por situações parecidas. O talento e carisma de Mulligan são com certeza grandes diferenciais no filme.
Tecnicamente “Bela Vingança” também é brilhante, apresentando uma montagem ágil, que mantém o ritmo da trama durante toda a duração do filme, além de uma bela fotografia. É interessante constatar o reflexo da personalidade da protagonista através da imagem de fundo dela na tela, então em um momento vemos um objeto vermelho acima de sua cabeça, simbolizando raiva, enquanto em outra cena o cenário é azul e branco, retratando uma serenidade e felicidade. A trilha sonora de Anthony Willis também é muito boa em criar o clima de tensão de certas situações e a escolha de músicas também é muito assertiva. Um destaque é o uso de uma versão instrumental da canção “Toxic”, de Britney Spears, feita pelo próprio Willis, que sintetiza brilhantemente o clima da narrativa.
Para finalizar, é importante apontar que “Bela Vingança” é um filme sobre vingança, mas não como costumamos ver no cinema, onde o personagem vai em busca morte e sangue, como na filmografia de Quentin Tarantino, por exemplo. O filme de Emerald Fennell é sobre uma retaliação no mundo real, que envolve riscos e sacrifícios pessoais da protagonista. Isso faz com que ele seja fundamental e urgente, já que faz excelentes reflexões sobre um tema que infelizmente ainda é necessário ser discutido.
Uma frase: – Cassie: “Ei. Eu te perguntei: o que você está fazendo?”
Uma cena: A despedida de solteiro.
Uma curiosidade: O título original (Promising Young Woman) é uma referência a Brock Turner, um estudante da Universidade de Stanford que foi condenado por agressão sexual em 2016. Apesar de sua convicção, ele foi referido por alguns como um “jovem promissor” (“Promising Young Man”).
Bela Vingança (Promising Young Woman)
Direção: Emerald Fennell
Roteiro: Emerald Fennell
Elenco: Carey Mulligan, Bo Burnham, Alison Brie, Clancy Brown, Jennifer Coolidge, Laverne Cox e Connie Britton
Gênero: Crime, Drama, Thriller
Ano: 2020
Duração: 120 minutos
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