ANИA e o feminismo russo soviético
O estereótipo feminino russo já é bem conhecido no mundo cinematográfico. Em contraposição à imagem dos homens, as mulheres são expostas normalmente em uma objetificação sexual e isso, infelizmente já tomou conta do imaginário coletivo. Então foi uma grata surpresa encontrar em Anna – O perigo tem nome uma versão mais próxima à realidade das mulheres soviéticas.
Um grande ponto positivo foi trazido pelo francês Luc Besson, construindo uma mulher forte (também lindíssima) e movida pelo seu desejo de liberdade, que funciona muito mais como um ícone de perseguição de seus próprios ideais do que como uma desculpa para explorar cenas de soft porn.
Anna poderia facilmente cair no clichê dos filmes de agentes secretos. No entanto, a pesquisa realizada pela equipe de produção e a preparação da atriz e modelo russa, Sasha Luss, apresenta um retrato humano e detalhista dos anseios e medos das mulheres que viveram na sociedade da antiga união soviética. Aqui as cenas de nudez são mínimas e delicadas. Os relacionamentos de Anna são baseados em cumplicidade e não em luxúria gratuita. As cenas de luta são plausíveis, mostrando uma luta real e não algum estilo exterminadora feminina que sai sempre ilesa.
Atualmente, a situação na Rússia ainda é complicada. Mulheres são diariamente diminuídas, subjugadas, vítimas de abusos e cobradas socialmente, de uma forma quase que desumana, a ser perfeitas (física e moralmente) e estarem dentro de casa à serviço dos homens e filhos. Não há nada de errado em se escolher uma vida de cuidados e carinhos para a família, quando isso é a escolha pessoal e intransferível da mulher. Porém, depois dos 3 anos em que eu vivi na Rússia, pude perceber que o machismo e a intolerância difundida (e velada) na sociedade são tão sufocantes, que as próprias mulheres assumem isso como algo normal, e se submetem a situações de conflito psicológico e até de sofrimentos físicos para alcançar a imagem social que se é cobrada. Então imagine na época da URSS…
A segunda parte do filme nos apresenta a Anna antes do primeiro contato com a KGB. Nesse perfil eu parabenizo Luc pelo trabalho minucioso e perspicaz da realidade soviética. Apesar de sim, existir os estereótipos já conhecidos, a apresentação da mulher jovem que, apesar do sofrimento diário, sonha em ter uma oportunidade para fugir da submissão em que se encontra, é algo muito real. Durante conversas que eu tive com mulheres russas (tanto na parte europeia, quanto na parte asiática da Rússia), quase todas me descreviam um relacionamento amoroso como uma obrigatoriedade, em que aceitar as traições e as agressividades dos maridos era parte do processo de reafirmação deles como homens e de garantia para elas, mulheres, da sobrevivência de suas famílias.
Então não se surpreenda com a “ingenuidade”, ou melhor, a facilidade com que Anna aceita o acordo do agente Alex Tchenkov – interpretado por Luke Evans. Para muitas mulheres, ainda hoje, é difícil sair do abismo social em que se encontram. No entanto, quando não se há mais possibilidades de ser feliz, uma oferta de se tornar alguém de quem se pode orgulhar é tentadora. E dessa forma, se vai delineando a trajetória de Anna M., após entrar para o mundo da moda parisiense e, em paralelo, traçar sua carreira de agente da KGB.
Destaca-se, inclusive a excelente atuação de Helen Mirren, como Olga, que funciona como a mulher que venceu as barreiras do machismo e comanda parte da organização de serviços secretos. Sua personagem impulsiona a saída de Anna da sua zona de conforto e, de forma perspicaz, tangencia o crescimento pessoal e profissional dela, de forma a legitimar o sororidade que toda sociedade precisa.
Os movimentos feministas mundiais estão em ascensão e em constante destaque na mídia, nas ruas, nas conversas de bar… E na Rússia esses movimentos vêm tomando forma nos últimos anos. Felizmente, apesar da pressão social, as mulheres estão enxergando os abusos e se erguendo contra a falta de políticas e garantias básicas de igualdade de gênero. Exemplos como vimos na Copa do Mundo de 2018 quando o grupo de russas ativistas Pussy Riot invadiram o campo, mostra, em dimensão mundial, a necessidade de se expor e de protestar.
Anna – O perigo tem nome trás um filme muito bem elaborado e que, muito além do carisma e da beleza de Sasha, apresenta um debate sobre a condição das mulheres, através de um pano de fundo dos entraves entre a CIA e a KGB na antiga união soviética. Um filme excelente, que intriga, inteligente e perspicaz, que fala abertamente das mazelas sociais e faz um paralelo com a vida de glamour e de crime de Poliatova. Mas, essencialmente, descreve a luta contra os sistemas opressores e a busca da liberdade que nós (mulheres) vivemos diariamente.
Que crítica fo-da! Eu vi o trailer desse filme e fui levada a crer que se tratava de mais um clichê de filme de espionagem russo com mulheres sendo objetificadas. Muito bom saber que o longa reverte essa lógica tão ultrapassada e ainda recorrente do cinema. Fique até com vontade de assistir! Parabéns pelo texto! 😉
Esse é um dos melhores textos que já li aqui nesse sítio, parabéns Tássya.
Ps: Contratem logo essa porcolunista