Crítica | Gladiador II

Crítica | Gladiador II

O que Ridley Scott faz em vida, ecoará mesmo na eternidade?

Há quem diga que a grande habilidade de um entertainer é saber ler sua plateia. Se isso é verdade, não há dúvidas que essa é a grande habilidade de Ridley Scott. É verdade que Scott tem uma carreira marcada por trabalhos que variam irregularmente do genial ao mediano; por outro lado, também é indiscutível que, considerando seu volume de trabalho – ele está com 86 anos e não para de trabalhar –, seja aceitável que nem todos alcancem o nível de excelência de suas grandes obras.

Infelizmente, não podemos dizer que Gladiador II esteja no seleto – porém nada pequeno – rol de grandes obras. Seu predecessor, o clássico Gladiador de 2000, com Russell Crowe no papel-título que o consagrou, é uma das joias brilhantes desse grupo. As comparações, portanto, seriam inevitáveis. Scott tem plena consciência disso e por isso sente-se à vontade para apresentar um novo épico de sandálias e espadas que subverte as expectativas em relação ao filme original. É justamente nesse ponto que Gladiador II se destaca como uma prova de que o diretor possui, entre suas principais qualidades, a rara habilidade de um entertainer: ler, como poucos, a sua audiência e responder a ela de forma criativa.

O que diferencia Gladiador II é sua inspiração não tanto na narrativa e apresentação do filme de 2000, mas sim no tom grandiloqüente e exagerado dos chamados “épicos de sandália e espada” que dominaram a indústria de Hollywood entre as décadas de 1950 e 1960, até a saturação e consequente decadência do gênero. Essas obras, que têm entre seus grandes clássicos títulos como Cleópatra (1963), Ben-Hur (1959) e Quo Vadis (1951), eram marcadas por uma grandiloquência tanto no texto quanto no enredo, com performances de grandes atores do teatro que apostavam em um tom quase shakespeariano, em contraste com a performance naturalista que se consolidou a partir dos anos 1970 e se tornou a norma desde então.

Nos cínicos anos 2000, não seria possível fazer um filme de sandálias e espadas nos moldes da velha Hollywood e esperar que ele funcionasse. Scott sabia disso naquela época, e por isso seu Gladiador adotou um tom mais cínico e trágico, semelhante à abordagem de outro grande épico, Spartacus (1960) de Stanley Kubrick. 25 anos depois, porém, o zeitgeist da cultura pop é definitivamente outro. Com tantas mudanças na forma como o público consome e interpreta histórias, Scott percebe que pode voltar à fonte original e entregar um filme de sandália e espadas tão épico, grandiloquente e deliciosamente brega quanto os grandes clássicos do gênero.

Ambientado IFI5 anos após os eventos do filme original,  Gladiador II segue o ex-guerreiro numidio Hanno (Paul Mescal), que após uma derrota contra as legiões romanas lideradas pelo herói e general romano Marcus Acacius (Pedro Pascal) que ceifa a vida de sua esposa Arishat (Yuval Gonen), se torna escravo e depois gladiador em Roma. Movido apenas por uma mistura de desejo de vingança e de morte – a sua própria, principalmente – Hanno se vê envolvido em intrigas e conflitos, após ser adquirido pelo ambicioso Macrinus (Denzel Washington) para entreter o povo e, o mais importante, a realeza de Roma, na maior de todas as arenas: o Coliseu.

O maior de todos os palcos da antiguidade é reproduzido – mais uma vez – em toda sua grandiosidade, com Scott – como de costume – fazendo um bom uso do CGI. O resultado é uma ótima produção visual com sequências de batalha competentes que não se acanha em apostar no quase gore para recriar a brutalidade das arenas romanas. O design de produção e figurino são deslumbrantes e contribuem para ampliar tanto o contexto histórico quanto o tom grandiloquente – que beira o cafona, mas que funciona muito bem.

No entanto, apesar dessa execução técnica de alta qualidade, o filme carece da profundidade emocional que marcou o original. A trilha sonora, de Harry Gregson-Williams, empalidece diante da icônica trilha original de Hans Zimmer, e lamentavelmente, apenas funciona quando a reproduz nota por nota. Por fim, a montagem, prejudica o ritmo do filme e desenvolvimento mais sólido de uma trama que é bem mais pretensiosa do que a de seu antecessor. O resultado é de um filme que em certos momentos parece simplesmente saltar de um conflito para outro, sem espaço para que a narrativa se conecte entre si e para que a trama possa respirar.

Esse problema, aliás, poderia comprometer mesmo significativamente a nossa relação com os personagens em tela, o que esvaziaria por completo o filme. Porém, apostando no já mencionado registro grandiloquente, são mesmo as atuações que salvam o espetáculo de Gladiador II. Mescal entrega uma performance que combina vulnerabilidade e força, retratando com intensidade a jornada emocional de Hanno. Pedro Pascal, empresta sua presença magnética para compor o general Marcus Acacius, conferindo ainda a sua performance uma gravidade e imponência bastante convincentes. Connie Nielsen está lá muito mais para funcionar como elo entre os dois filmes, mas quando é necessário, entrega suas cenas com competência e dignidade.

Mas quem brilha realmente é Denzel Washington. Seu Macrinus engole todos à sua volta a cada segundo de projeção na tela. Outro mérito do diretor Ridley Scott de saber escolher bem seus atores, e dar àquele que talvez seja o maior ator de Hollywood em atividade, o papel que na verdade é a própria força motriz e espinha dorsal da história. E é bastante apropriado, diante do evidente subtexto político do filme, que seja um ator negr a entregar essa performance.

O roteiro de David Scarpa e Peter Craig usa Roma como uma analogia clara aos EUA, um império em decadência governado por sicofantas histriônicos, que é apenas uma mera sombra distorcida das promessas de sonho de seus grandes líderes do passado, que como o próprio personagem de Mescla explica, são tão frágeis como fumaça. Ainda assim, são justamente essas promessas que servirão para dar vazão ao tom grandiloquente do filme, e em certa medida oferecerão uma motivação – ainda que tênue – para os personagens a partir do terceiro ato.

Nada mais acertado – no contexto do comentário político – que a força opositora a esse frágil sonho se apresente na forma de um agente do caos que, literalmente, ver o proverbial circo pegar fogo. E considerando que o filme foi realizado antes do recente resultado das eleições dos EUA, nada também mais irônico, e até mesmo capaz, quem sabe, de trazer, ainda que por alguns minutos, um pouco de acalento a corações desolados e perdidos.


Uma frase: Chamem por seus Deuses, e se eles não vierem… então sequer Deuses eles são!

Uma cena: A recriação da batalha naval dentro do Coliseu – com direito a tubarões – merece destaque;

Uma curiosidade: Além da atriz Connie Nielsen (Lucilla), também retorna do primeiro filme o grande Derek Jacobi no papel do senador Gracchus.


Gladiador II (Gladiator II)

Direção: Ridley Scott
Roteiro: David Scarpa
Elenco: Paul Mescal, Pedro Pascal, Joseph Quinn, Fred Hechinger, Lior Raz, Derek Jacobi, Connie Nielsen e Denzel Washington
Gênero: Épico de ação, Aventura épica, Épico, Espada e sandália, Ação, Aventura, Drama
Ano: 2024
Duração: 148 minutos

Mário Bastos

Quadrinista e escritor frustrado (como vocês bem sabem esses são os "melhores" críticos). Amante de histórias de ficção histórica, ficção científica e fantasia, gostaria de escrever como Neil Gaiman, Grant Morrison, Bernard Cornwell ou Alan Moore, mas tudo que consegue fazer mesmo é mestrar RPG para seus amigos nerds há mais de vinte anos. Nas horas vagas é filósofo e professor.

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