Crítica | Argentina, 1985
“O sadismo não é uma ideologia política ou uma estratégia de guerra, mas sim uma perversão moral”. Com essa frase Júlio Strassera – o promotor argentino que pediu a condenação dos 9 militares que lideraram a Argentina durante o mais sangrento golpe militar do país – entrou para a história como o agente público que condenou membros da ditadura militar em um tribunal civil, em 1985. Em Argentina, 1985, o diretor e roteirista Santiago Mitre nos leva a uma Argentina pós-golpe, com uma democracia ainda enfraquecida mas ávida por justiça.
Julio Strassera (Ricardo Darín) é um promotor de justiça que deve acusar a junta militar que governou o país durante a ditadura (1976 a 1982). Sem grandes convicções de que seja um julgamento sério, Strassera inicia a tarefa a contragosto e sem apoio de colegas para compor uma equipe. Filmado em locações históricas reais, a obra entrega excelentes atuações, começando por Darín, seguido por Peter Lanzani (Luis Moreno Ocampo), o promotor adjunto que recruta jovens inexperientes do serviço público para ajudar no caso.
Destaque para a cena em que Strassera e seus pupilos se dirigem para entregar as provas e depoimentos coletados durante os parcos 4 meses e 2 semanas antes do início do julgamento: um carrinho com 16 volumes, 4 mil páginas, 709 casos e mais de 800 testemunhas. A legitimidade da equipe de Strassera é colocada em dúvida, mas o volume de provas por ela coletada é, na prática, um cala boca a todo e qualquer ataque.
A juventude é, por si só, um fator importantíssimo no longa, a começar por Moreno Ocampo (Peter Lanzini), o jovem promotor adjunto cujas convicções superaram a família de militares e a desaprovação da própria mãe sobre sua atuação no julgamento dos ditadores. Ocampo é um personagem fundamental porque entende que é a opinião pública da classe média – que tende a passar pano em golpes militares – a qual eles têm que convencer para que o julgamento tenha legitimidade.
Darín, como sempre, entrega uma atuação complexa e digna de um personagem que se transformou em herói nacional. Moderando entre a discrição e a persistência, Ricardo Darín apresenta o promotor como um profissional experiente mas que se sente responsável pela própria inação durante os anos de ditadura. A complexidade de alguém que se calou em anos de chumbo se mostra quando o promotor tem a oportunidade de usar todo o seu conhecimento e experiência para fazer justiça às vítimas do regime.
O longa também acerta na direção de arte, com ambientações bem produzidas, com destaque para a sala de julgamento, onde se passa parte da história. A fotografia contribui sobremaneira para a localização do espectador nos anos 1980, com tons esmaecidos e que relembram a paleta de cores que reconhecemos da época.
Para além de um ótimo filme, Argentina, 1985 é uma lembrança viva e atual daquilo que o Brasil poderia e deveria ter feito em 1988, quando do fim da ditadura militar: processar, julgar e condenar a todos os militares envolvidos em sequestros, torturas e assassinatos de opositores ao regime durante os anos de chumbo. E mesmo que nós, brasileiros, tenhamos iniciado a democracia com base no esquecimento e não na memória, sempre é tempo de relembrarmos: DITADURA NUNCA MAIS.
Uma frase: “Um dos meus torturadores trabalha para o prefeito. O médico que checava se eu suportaria mais choques hoje é chefe de um hospital. Eu tenho que conviver com eles.”
Uma cena: Depoimento de Adriana Calvo de Laborde.
Uma curiosidade: O filme foi selecionado como candidato da Argentina ao Oscar 2023 na categoria de Melhor Longa-metragem Internacional.
Argentina 1985
Direção: Santiago Mitre
Roteiro: Santiago Mitre e Mariano Llinás
Elenco: Ricardo Darín, Peter Lanzani, Alejandra Flechner e Norman Briski
Gênero: Biografia, Policial, Drama
Ano: 2022
Duração: 140 minutos
DITADURA NUNCA MAIS!