Crítica | Medida Provisória (2022)
Quando um filme é mais do que um filme.
“Medida Provisória“, filme de estreia como diretor do artista baiano Lázaro Ramos, finalmente estreia nas salas de cinema. O finalmente aqui é um dado importante, por dois motivos.
Primeiro, o mais evidente, diz respeito às controvérsias que envolveram o lançamento do filme que teria, através de entraves burocráticos da ANCINE, sido boicotado pelo governo federal levando o diretor e outros artistas a ecoarem protestos contra censura. Lázaro Ramos, bem como Wagner Moura, com seu Marighella, são notórios críticos bastante sonoros ao atual governo com bastante espaço na mídia nacional internacional, o que deve incomodar bastante, e o que torna as denúncias de perseguição e “censura” bastante plausíveis. O filme de Lázaro Ramos, finalizado em 2020 e já com estreia em festivais internacionais levou assim, mais 2 anos para ver a luz no seu país de origem.
O segundo, não menos evidente, mas que vale a pena destacar, é o fato de se tratar de um filme produzido, dirigido e roteirizado por Lázaro Ramos: um homem negro, nascido em uma classe social pobre e sem oportunidades, em um país desigual como o Brasil. Sem exageros, Lázaro Ramos é um exemplo de sucesso, impulsionado, sobretudo, pelo seu conhecido talento, que faria corar o personagem de Will Smith em “À Procura da Felicidade” (The Pursuit of Happyness, 2006). Como indivíduo, e como um importante representante da comunidade negra em um país como o Brasil, assim, “Medida Provisória” chega muito tarde. Mas chega.
Para além de seu contexto político e social no qual se vê em inserido, a obra em si reforça a importância do debate racial no país. Baseado na premiada e bem-sucedida peça teatral “Namíbia, Não!” de Aldri Anunciação (que também é ator e interpreta um personagem no filme), o filme apresenta um Brasil que embora distópico, não pode ser, atualmente, considerado improvável.
Na trama, o governo federal, em virtude de um avanço significativo das medidas de reparação em favor da comunidade negra, decide responder de forma mais reacionária ainda implantando um “programa” que impõe à população negra o retorno compulsório à África. Nesse cenário, acompanhamos os dramas pessoais dos protagonistas vividos por Taís Araújo, Seu Jorge e o britânico, filho de brasileira, Alfred Enoch. É através deles que o diretor busca problematizar diversas questões, relacionadas ao racismo no Brasil. Sem maniqueísmos, o texto não poupa críticas até mesmo a certos discursos identitários que povoam a esfera pública nacional ao recorrer ao termo “melaninados acentuados”.
Medida Provisória, assim, tem sua importância como obra para além da obra, por tudo já acima posto. Por outro lado, enquanto obra cinematográfica, nãos está, evidentemente, livre de problemas.
Há dois pontos bastante incômodos no filme. O primeiro é uma nítida dificuldade de transposição do texto original, desenvolvido para o teatro, para a linguagem cinematográfica. Embora aparente o contrário, há mais diferenças do que semelhanças entre o cinema e o teatro, e isso costuma ficar bastante evidente justamente na direção de atores. Na falta de um diretor mais experiente, diálogos costumam ficar muito carregados e até exagerados. E é justamente isso que ocorre aqui; e em um filme como “Medida Provisória”, que se insere em uma discussão tão intensa e acalorada quanto a questão racial no país, isso pode soar acentuadamente panfletário e cansativo para muitas audiências. Ainda, no quesito de problemas de transposição de linguagem, o filme deixa a desejar em termos de fotografia e design de produção, que em si não atrapalham, mas quando somados ao problema da atuação apontado, não deixam de se destacar.
O outro ponto é a escalação de Alfred Enoch como protagonista. É difícil dizer até que ponto o ator domine o idioma português, mas no filme fica nítido como ele se expressa com certa dificuldade, o que prejudica significativamente sua performance. Enoch – que tem entregado trabalhos bem interessantes, como na recente série de sci-fi Fundação, da Apple TV+ – parece, em diversos momentos, pouco à vontade em seu papel. Some-se a isso ao fato de atuar lado-a-lado de excelentes atores como Seu Jorge e Thaís Araújo, e o problema fica ainda mais nítido.
Ainda assim, “Medida Provisória” é um filme que merece nossa atenção. Trata-se da estreia de um cineasta que tem algo a nos dizer, e isso, em momentos como os de hoje, é algo cada vez mais importante e que precisa ser estimulado.
Uma frase: “O Brasil é meu país também!”
Uma cena: Burocratas do governo discutem como o povo de Salvador tá dando trabalho.
Uma curiosidade: a mãe do ator Alfred Enoch, que interpreta o protagonista Antônio, é uma médica brasileira. Mas seu pei é o ator britânico William Russell.
Medida Provisória
Direção: Lázaro Ramos
Roteiro: Alfred Enoch, Seu Jorge, Taís Araújo, Aldri Anunciação, Mariana Xavier, Adriana Esteves e Renata Sorrah
Gênero: Drama
Ano: 2022
Duração: 103 minutos