Crítica | Escrevendo com Fogo

Crítica | Escrevendo com Fogo

Imagine um cenário de guerra. Imagine jornalistas nesse cenário de guerra. Essa foi a minha primeira sensação quando li a sinopse de Escrevendo com Fogo (Writing with Fire), documentário que concorre ao Oscar 2022. Se você imaginou um grupo de jornalistas homens cobrindo uma guerra, errou. Escrevendo com Fogo conta a história do Khaba Lahariya, um jornal indiano independente criado e formado por jornalistas mulheres das casta Dalit – parte da população considerada impura, excluída da soeciedade – que têm o desafio de redefinir e transformar o veículo para o formato digital. 

Para compreender a potência das mulheres do Khaba Lahariya é preciso assimilar que, culturalmente, a Índia tem forte identificação social com um sistema de estratificação socioeconômica (castas). As castas, apesar de proibidas, ainda moldam a organização social e política indiana. Entre os grupos hierárquicos, os Dalits são chamados “intocáveis”, restando para eles os piores tipos de ocupação, condições miseráveis de vida e exclusão social.

Além disso, o país ainda justifica e naturaliza uma série de restrições e violências às mulheres em pleno século 21. Assim, fica fácil entender porque essas jornalistas podem ser facilmente consideradas correspondentes de guerra. O documentário, que foi distribuído para mais de 40 países, selecionado para 100 festivais no mundo inteiro, já angaria mais de 20 prêmios e está disponível para compra/aluguel nas plataformas digitais Claro Now, iTunes/Apple, Google/YouTube e Vivo Play.

O filme acompanha a mudança do jornal Khabar Lahariya para o formato digital após mais de 20 anos de atuação como jornal impresso. Contrariando todas as possibilidades, o veículo tornou-se referência na Índia e ultrapassou mais de 10 milhões de visualizações no YouTube. A persistência de personagens reais que – como Meera, chefe de reportagem, e outras jornalistas -, mesmo em meio à pobreza, preconceito e contrariando familiares, fazem do jornal um veículo relevante, com importantes denúncias capazes de mudar a vida de pessoas e vilarejos locais.

O jornalismo do Khabar funciona como um refresco em um deserto. Em um cenário misógino e, obviamente, dominado por homens, ser mulher e ser jornalista é remar contra a maré. A busca por ângulos críticos e apurações acuradas coloca em risco suas vidas, muitas vezes tão somente por serem do gênero feminino. Durante o documentário, acompanhamos histórias de donas de casa em situação de extrema violência. Casos os quais, sem a denúncia do jornal, jamais teriam sido apurados e sequer indiciados. É notório como, em entrevistas com indianos, “pequenas” violências acontecem. Às vezes uma palestrinha sobre como a jornalista deve fazer suas perguntas, ou  questionamentos sobre técnicas do jornalismo – como se a repórter não soubesse o que faz.

O documentário levou 5 anos para ser produzido e emociona ao compreendermos que as mulheres do Khabar Lahariya fizeram o impossível em meio à miséria, machismo e misoginia: fundaram jornalismo de qualidade, independente e deram relevância ao veículo na era digital. Dirigido e produzido por Rintu Thomas e Sushmit Ghosh, Escrevendo com Fogo nos impele à reflexão sobre um sistema invisível de exclusão social e violência contra as mulheres, e nos mostra que a realidade indiana não é tão diferente do dia a dia de mulheres brasileiras pretas e pobres. 

No mês da mulher não há o que se celebrar enquanto ainda morrermos vítimas de violências físicas, adoecermos vítimas de violências psicológicas. Nada há o que comemorar enquanto nossos corpos forem objetificados, pesados e medidos como animais prontos para o abate. Não descansaremos enquanto a maternidade nos for imposta e a dupla, tripla jornada feminina existir. Honraremos aquelas que se foram e as que virão e não desistiremos de existir em um mundo onde exista equidade de gênero.


Uma frase: – “Meu coração me dá coragem pra continuar.”

Uma cena: O momento que mostra uma repórter entrevistando um senhor que está chorando porque sua filha tinha sido estuprada.

Uma curiosidade: O filme teve sua estreia no Festival de Sundance, onde ganhou 2 prêmios.


Escrevendo com Fogo (Writing with Fire)

Direção: Sushmit Ghosh e Rintu Thomas
Elenco: Meera Devi, Shyamkali Devi e Suneeta Prajapati
Gênero: Documentário
Ano: 2021
Duração: 94 minutos

Elaine Fonseca

Jornalista, servidora pública e nerd.

2 comentários sobre “Crítica | Escrevendo com Fogo

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