Crítica | Identidade (Passing)

Em 1929 a escritora Nella Larsen escreveu o livro chamado “Passing” que deu nome ao termo utilizado para negros de pele clara que se passavam por brancos, para evitar o preconceito. Agora em 2021 a diretora Rebecca Hall adaptou a história no filme “Identidade”, produção da Netflix.
O filme conta a história de Irene Redfield (Tessa Thompson), que se encontra com uma amiga de infância chamada Clare Bellew (Ruth Negga), uma mulher negra de pele clara que se passa por branca. Inicialmente Irene fica com receio de manter uma amizade com Clare, principalmente ao descobrir que ela é casada com um homem branco e racista. Curiosamente a própria senhora Redfield também faz “passing” ao passear pela área nobre de Nova York, sem chamar a atenção, mas ela mora no Harlem e é casada com um homem negro.
O tema de “Identidade” é complexo e aborda diversos assuntos relacionados ao racismo e de como isso afeta os negros na forma de viver e se comportar em sociedade, influenciado pelos brancos. A trama se passa nos anos 1930, onde a questão racial era mais complicada por conta das leis de segregação racial, mas infelizmente na atualidade apesar dos avanços, ainda estamos muito longe de um “mundo ideal”.
A situação de Irene é mais “cômoda”, pois ela se casou com um médico e eles têm uma boa condição de vida, com direito até a uma empregada doméstica. Já Clare foi criada por uma família branca, então convivendo entre eles conheceu seu marido, um homem branco e infelizmente racista. Apesar disso, ela tem uma vida confortável, mesmo consciente da situação delicada e perigosa, além de aparentemente não gostar tanto do companheiro, mesmo vivendo afastada de outros negros, para ela se tornou uma escolha de vida. Nessa época, para as mulheres talvez a única opção de ter recursos financeiros era casando, mas isso valia para as brancas, já que as negras já trabalhavam — como a empregada doméstica de Irene. Então será que a senhora Redfield poderia julgar as atitudes da senhora Bellew? As duas se aproximam após Clare “forçar a barra” e essa proximidade faz com que a protagonista entenda melhor a situação da amiga de infância.
Cada uma vive a sua própria “fantasia”, mas é através do ponto de vista de Irene que a trama investe seu tom reflexivo. Ela pode não viver o tempo todo fingindo que é branca, como Clare, mas por outro lado não quer expor seus filhos à questão do racismo. Assim quando seu marido conta para os filhos sobre uma notícia que leu no jornal sobre um negro que foi assassinado, ela acha que ainda não é hora de expor para eles a triste realidade. Será que a senhora Redfield deveria sofrer o mesmo julgamento que fez em relação a senhora Bellew? As duas têm propósitos semelhantes, gozando do privilégio, porém uma delas abraçou o tipo de gente que despreza sua condição social.
Outro ponto interessante é a relação de Irene com Hugh (Bill Camp), um homem branco “intelectual” que convive em harmonia com os negros. Ela sempre organiza sozinha eventos de caridade para sua comunidade e ele sempre comparece para ajudar na causa.

As atuações de Tessa Thompson e Ruth Negga são brilhantes e um dos pontos fortes de “Identidade”. As semelhanças entre as personagens e suas particularidades são interessantes, do tipo que se fossem feitas em uma peça de teatro elas poderiam trocar de papéis em apresentações diferentes. Cada uma delas tem seu momento de brilhar, ainda que Thompson tenha mais tempo em tela por ser a protagonista.
A diretora Rebecca Hall foi inteligente em filmar “Identidade” em preto e branco, assim ela pôde retratar melhor à época em que a trama se passa — utilizando também a razão de aspecto utilizada nos filmes do período (que também ajuda a simbolizar a solidão das personagens) — como também serve para acentuar a parte visual do tom de pele das personagens. Assim fica claro para o espectador como é possível visualmente para uma pessoa negra de pele clara se passar por branca. Outro recurso técnico visual interessante é na montagem, que utiliza um “fade-out” de forma invertida, então ao invés de mostrar a tela escurecendo, vemos a imagem clareando para sinalizar a transição de uma cena para outra.
Talvez “Identidade” pudesse ter se aprofundado mais sobre a questão do “passing”, mas a diretora Rebecca Hall prefere uma abordagem mais delicada, deixando muitas questões mais complexas como pano de fundo ou como reflexões para o espectador. Ainda assim, é um filme que explora bem a crueldade do racismo, mas especificamente focando nas dificuldades das mulheres negras em uma época complicada para elas terem autonomia das próprias vidas sem ser através do casamento com um homem.
Esse texto contou com colaboração de Junio Queiroz

Uma frase: – Irene: “Estamos todos passando por uma coisa ou outra, não é?”
Uma cena: O baile beneficente de Irene.
Uma curiosidade: O termo “passing” refere-se à prática de membros de raças, religiões, grupos étnicos, etc., minorias ou oprimidos, fingindo ser brancos (ou de outra forma membros da cultura majoritária) para escapar do preconceito. A escritora / diretora deste filme, Rebecca Hall, é mais conhecida como atriz; embora ela quase sempre tenha sido escalada como personagens brancos, ela é parte afro-americana. Em uma entrevista de 2018 para o Deadline, Hall disse: “Eu me deparei com o romance em um momento em que estava tentando reconhecer criativamente um pouco da minha história pessoal de família e o mistério em torno do meu avô birracial por parte de minha mãe americana. Em parte, fazer este filme é uma exploração dessa história, à qual nunca tive realmente acesso.”

Identidade (Passing)
Direção: Rebecca Hall
Roteiro: Rebecca Hall
Elenco: Tessa Thompson, Ruth Negga, André Holland, Bill Camp, Gbenga Akinnagbe, Antoinette Crowe-Legacy e Alexander Skarsgård
Gênero: Drama
Ano: 2021
Duração: 99 minutos