Crítica | Proibido Nascer no Paraíso
Mulheres, numa sociedade patriarcal, não possuem domínio total sobre o próprio corpo. Somos objetificadas para o prazer masculino desde muito pequenas, oprimidas por padrões de beleza inalcançáveis, ensinadas a odiar a natureza de nossos ciclos menstruais, nossos pelos corporais, coibidas de vivenciar nossos prazeres, impedidas de escolher sobre prosseguimento de uma gestação, violentadas física e psicologicamente na hora do parto, e diversas outras formas que denotam a nossa ausência de livre-arbítrio sobre nós mesmas. Um tipo muito específico de proibição imposta às mulheres do arquipélago de Fernando de Noronha (PE) chamou atenção da jornalista e cineasta Joana Nin e virou tema do segunda longa-metragem de sua carreira: Proibido Nascer no Paraíso, lançado no streaming da Globoplay, após algumas exibições especiais em salas de cinema.
Por mais que pareça absurdo, é proibido nascer em Fernando de Noronha há cerca de 20 anos. Uma legislação local obriga as futuras mães a realizarem procedimentos obstétricos no continente, ou seja, a viajarem de avião até Recife, capital de Pernambuco, semanas antes do parto e autorizadas a retornarem para suas casas somente um mês depois do nascimento do bebê. Muitas dessas mulheres precisam lidar não apenas com dores físicas e emocionais decorrentes do ato de dar à luz. Impedidas de escolher onde gerar, elas são separadas de suas famílias, inclusive, dos demais filhos. Um momento tão singular na vida de uma mulher, que é o parto, em Noronha, é marcado por desafios e obstáculos que parecem somente existir por motivações políticas.
O arquipélago brasileiro é um dos destinos turísticos mais lucrativos das últimas décadas. E, por ser uma área protegida ambientalmente por sua diversidade marinha, o direito de nascer está diretamente relacionado ao direito à propriedade. A disputa por espaço na região coloca nativos e grandes empreendimentos da rede hoteleira em lados desiguais da balança. Boa parte dos residentes nascidos em Fernando de Noronha antes da proibição, enfrentam várias dificuldades para conseguir comprar um imóvel ou ampliar terrenos, enquanto as autoridades locais fazem vista grossa à estrutura predatória de construção de grandes resorts e pousadas de luxo.
Noronha é um distrito estadual de Pernambuco, mas sua população nativa está fadada à extinção. Gerações de famílias que chegaram antes dos empreendimentos turísticos, quando a ilha ainda era uma base militar, são impedidas de perpetuarem suas raízes locais, de fortalecerem o vínculo ancestral com as futuras gerações, registradas como nativas do continente. Para quem nasceu insular, isso é quase uma afronta. Imagina o dano irreparável para mães, pais e filhos. Um álbum de fotos de um nascimento que lembra o momento em que mães foram tiradas de seus lares e obrigadas a gerar onde o poder público considera mais pertinente, mais adequado aos interesses de governantes.
Isso tudo acontece mesmo que o arquipélago tenha um hospital que poderia ser equipado para atender e receber suas gestantes. Revoltante, meu caro leitor. Mais sentimentos de indignação vão, provavelmente, dominar por completo sua experiência ao assistir esse documentário, que acompanha, particularmente, três gestantes de famílias tradicionais da ilha, rodado entre 2017 e 2019. São elas: Ione, Harlene e Babalu. Mulheres de diferentes vivências e realidades que lutam pelo direito de escolher onde seus corpos gestantes irão parir aqueles que carregarão o legado nativo de Noronha.
Os momentos de respiro de Proibido Nascer no Paraíso são os dedicados a exaltar as belíssimas paisagens locais. Ainda que necessários para nos ajudar a digerir o amargo de cada uma das histórias pessoais dessas mães, os planos e enquadramentos de excelente definição que nos remetem para dentro da natureza do arquipélago parecem uma eficiente peça de publicidade para o turismo na região. Por mais que a mensagem política do longa se sobressaia, esse recurso é uma faca de dois gumes. Fica a impressão de que a narrativa poderia ser melhor desenvolvida se fosse apenas uma reportagem especial de televisão.
Uma frase: “Quem consultou a gente para saber se isso era bom para gente que mora aqui?”
Uma cena: Babalu no carro a caminho do aeroporto e momentos antes de entrar no avião.
Uma curiosidade: A cineasta teve ideia do documentário em sua primeira visita a Fernando de Noronha, quando ouviu de um morador: “Aqui é proibido nascer”.
Proibido Nascer no Paraíso
Direção: Joana Nin
Roteiro: Joana Nin, Sandra Nodari e Julia Lea de Toledo
Elenco: Babalu, Ione, Harlene
Gênero: Documentário
Ano: 2021
Duração: 78 minutos