Review | Watchmen S01E01 – It’s Summer and We’re Running Out of Ice

Review | Watchmen S01E01 – It’s Summer and We’re Running Out of Ice

O nascimento de uma nação, e de um mundo muito diferente (mas não assim tão diferente do nosso).

Desde a primeira cena, Watchmen de Damon Lindelof, diz a que veio. Sua série pretende discutir as violentas relações raciais que formaram os EUA e que, até hoje, repercutem na tensa relação entre o Estado e a sociedade estadunidense, particularmente manifestada na violência policial contra o povo negro naquele país.

Se na obra original de Alan Moore e Dave Gibbons a discussão racial (bem como personagens negros) é praticamente inexistente, na série da HBO que pretende dar continuidade ao audacioso universo ali criado, extrapolando seu desenrolar para os dias atuais, temos uma mulher negra de meia-idade como protagonista. A mensagem de Lindelof a Moore – após tantas polêmicas envolvendo adaptações de sua mais famosa obra – é bastante clara, para bom entendedor.

É difícil, com o contraste proposto por Lindelof, não enxergar personagens icônicos como Rorschach (e outros, como o Hooded Justice) como um arquétipo representativo de uma sociedade violenta marcada pelo racismo. Não é por acaso que o radicalismo do Rorschach de Moore – desde o principal pensado como a representação do aspecto mais doentio do vigilantismo que parece, em alguma medida, permear o patriotismo estadunidense – se desdobra para a extrema direita estadunidense que tem, na supremacia branca, sua mais sintomática manifestação. Alguns diriam que, talvez, a mensagem é colocada de forma muito explícita. Porém, talvez, considerando o mundo em que vivemos hoje, seja esta uma medida necessária.

[button-red url=”#” target=”_self” position=””]Aviso de SPOILERS[/button-red]

Os comentários a seguir falam sobre acontecimentos narrados em It’s Summer and We’re Running Out of Ice, o primeiro episódio da primeira temporada de Watchmen.

#Watchmen (S01E01) – It’s Summer and We’re Running Out of Ice

Não é por acaso, afinal, que o primeiro episódio da série abre com uma expressa referência ao infame “O Nascimento de uma Nação” de D.W. Griffith, que no início do século passado atuou como uma importante peça de propaganda da supremacia branca que redefiniu o papel da Ku-Klux-Klan no país, resgatando-a do ostracismo e influenciando toda uma nova onda de racismo e segregação no país. Os papéis, porém, são invertidos e, no princípio, o estranhamento é tão grande ao ponto de nos questionarmos se não estamos diante de uma realidade alternativa na qual os negros não são uma minoria historicamente massacrada. É, afinal, Bass Reeves (o delegado negro de Oklahoma) quem, veste o capuz, laça o ladrão de gado – um homem branco que exercia a função de xerife da cidade – pelo pescoço e, diante de uma audiência de brancos que acabam de sair da igreja, impede um linchamento invocando a lei. Nada mais surreal.

Tudo isso é projetado em uma tela de cinema que hipnotiza o olhar de um garotinho negro sozinho na sala de projeção. A mensagem ganha força, mas o estranhamento, diante do mundo real que conhecemos, apenas se reforça. Segundos mais tarde, porém, a violenta realidade racista dos EUA explode diante de nossos olhos. Estamos em 1921, em meio à Rebelião Racial de Tulsa, Oklahoma – evento histórico que, em nosso mundo, foi convenientemente escondido pelas autoridades brancas dos EUA durante anos. Os pais do garotinho negro tentam desesperadamente salvá-lo. Conseguem, mas se sacrificam no processo. E o primeiro ato do garoto, após perceber que sobreviveu, é resgatar uma outra criança negra, um bebê, enrolado em uma bandeira dos EUA. Mais uma vez, talvez a sequência pudesse ser considerada, em outros tempos, expositiva demais. Nos tempos de hoje, porém, “desenhar” essas coisas com fortes cores é mais do que necessário.

É inevitável a relação com uma boa e velha trágica história de origem de um super-herói de histórias em quadrinhos se, no início da indústria, negros escrevessem histórias de super-heróis negros. E talvez seja isso mesmo que estejamos vendo. O garotinho, aliás, irá crescer e envelhecer para se tornar o personagem de Louis Gossett Jr., o qual – ao que tudo indica – deve ter se tornado um vigilante em algum momento da sua vida e virá a se tornar uma espécie de mentor da personagem de Regina King, Angela Abar ou melhor Irmã Noite.

Após esse breve, e importante, introito, a narrativa avança para os dias de hoje na qual contemplamos o que aquele mundo – o mundo da realidade “paralela” (?) de Watchmen – veio a se tornar. Não se trata aqui, cabe destacar, de uma continuidade do filme de Zack Snyder de 2009. Logo fica claro que é a partir da obra de Dave Gibbons – afinal, Alan Moore deixou muito claro que não queria mais créditos pela obra – que a série da HBO irá se desenvolver. Lá, eles não tiveram um 11 de Setembro, mas sim uma monstruosa Lula Gigante que surgiu em Nova York na década de 80 e foi responsável pela morte de 3 milhões de pessoas. Essa tragédia mudou o mundo, encerrou a Guerra Fria e, aparentemente, elegeu Robert Redford presidente. Armas de fogo passaram a ser controladas nos EUA – surreal mesmo, hein! – e policiais passaram a ser autorizados a esconder suas identidades atrás de máscaras. Há, porém, aqueles que, através das palavra de Rorschach, viram na tragédia de Nova York uma justificativa para sua paranoia, intolerância e racismo. Aparentemente o plano de Adrian Veidt (aqui, interpretado por Jeremy Irons) não saiu exatamente como ele previa. O homem mais inteligente do mundo, afinal, parece não ter se dado conta de calcular a variável do racismo em seu inusitado e audacioso plano para salvar a “humanidade”.

Assim, em mais uma explícita – porém, de novo, necessária – inversão de papéis, logo na primeira sequência da série no mundo atual, vemos um estereótipo de um redneck estadunidense ter sua caminhonete parada por um policial negro usando uma máscara. Ao tentar pedir apoio no rádio do carro para lidar com a situação, após ver indícios de que suspeito era um membro da Sétima Kavalaria – uma organização terrorista supremacista branca que parece ser uma mistura da KKK com um culto à Rorschach -, o policial é metralhado pelo homem branco. Aos poucos o estranhamento com o nosso mundo se dissolve e somos gradativa e vergonhosamente lembrados de como a arte imita a realidade.

A trama, logo em seguida, apresenta nossa personagem principal, Angela Abar. Nesse mundo, além dos policiais usarem máscaras, eles são obrigados, para sua segurança, a esconder sua profissão. Por isso, na escola de seu filho, num daqueles conhecidos “Dias de Profissão”, ela se apresenta como uma policial aposentada por invalidez que se tornou dona de uma padaria. Seu filho, aliás é branco, embora seu marido Cal Abar (o sempre ótimo Yahya Abdul-Mateen II de Aquaman) seja também negro. O casal tem outras crianças, também brancas, constituindo uma interessante família multi-racial. Aparentemente as crianças foram adotadas – mais uma vez, negros adotando crianças brancas, recorre a outra inversão que reforça o estranhamento – o que indica que os ferimentos sofridos por Angela a impede de engravidar. No caminho para casa, enquanto Angela admoesta seu filho Topher por ter brigado na escola com o coleguinha projeto de racista, sirenes ecoam e os carros freiam na rodovia: nesse mundo, aparentemente, não há aquecimento global (talvez nem no nosso haja, não é mesmo?), mas pequenas lulas interdimensionais chovem dos céus e depois se derretem em poças de fluído malcheiroso.

Após essa boa ambientação, a narrativa engrena naquela que parece ser sua trama principal: a caçada do departamento de Polícia de Tulsa à Sétima Kavalaria. E logo vemos a protagonista chutando portas e bundas de supremacistas brancos. Regina King está simplesmente magnética no papel da mãe de família que atua em segredo como a policial Irmã Noite, e ao que tudo indica, não será difícil se apaixonar e torcer por essa personagem. O elenco de apoio, além do já citado Yahya Abdul-Mateen II, conta ainda com o excelente Tim Blake Nelson no papel do mesmerizante Detetive Looking Glass, e com participações especiais de nomes como Don Johnson e o já mencionado Jeremy Irons. Embora se trate de um episódio de introdução, “It’s Summer and We’re running out of ice” – um sugestivo título do “aumento de temperatura” que está por vir – não deixa a desejar em matéria de ação e tensão, situando de imediato o público no tom preciso de um thriller policial, que em matéria de gênero, parece ser o local no qual a série de Lindelof pretende se situar.

Watchmen, de Damon Lindelof, apresenta, assim, um primeiro episódio bastante competente com diversos elementos promissores. Ao escolher trabalhar uma história que tem no vigilantismo, na polícia e na justiça dos EUA como seus elementos principais, Lindelof, acertadamente, assume o enfoque crítico apropriado e utiliza sua obra para discutir temas como genocídio negro institucionalizado através da violência policial no país, o ressurgimento do racismo de extrema direita e a problemática cultura armamentista do país. Talvez, por ser um homem branco, sem nenhum negro na equipe principal de produtores, trazendo uma mensagem tão contundente, Lindelof possa vir a ser legitimamente criticado por representantes da comunidade negra dos EUA. Porém, mais uma vez, considerando o nosso distópico mundo atual – que, mesmo sem um ser como o Dr. Manhattan construindo e desfazendo cidades nas areias de Marte, seja talvez mais estranho do que o de Watchmen -, não seria exagero dizer que toda ajuda, por mais expositiva que seja, é mais do que necessária.



Série: Watchmen
Temporada:
Episódio: 01
Título: It’s Summer and We’re Running Out of Ice
Roteiro: Damon Lindelof
Direção: Nicole Kassell
Elenco: Regina King, Don Johnson, Tim Blake Nelson, Yahya Abdul-Mateen II, Andrew Howard, Jacob Ming-Trent, Tom Mison, Sara Vickers, Dylan Schombing, Louis Gossett Jr., Jeremy Irons, Jean Smart, Adelaide Clemens, Hong Chau e James Wolk

Mário Bastos

Quadrinista e escritor frustrado (como vocês bem sabem esses são os "melhores" críticos). Amante de histórias de ficção histórica, ficção científica e fantasia, gostaria de escrever como Neil Gaiman, Grant Morrison, Bernard Cornwell ou Alan Moore, mas tudo que consegue fazer mesmo é mestrar RPG para seus amigos nerds há mais de vinte anos. Nas horas vagas é filósofo e professor.

3 comentários sobre “Review | Watchmen S01E01 – It’s Summer and We’re Running Out of Ice

  1. Man, demorei de assistir e, mais uma vez, sua excelente crítica ampliou tudo que tinha sentido e entendido ao ver o episódio e, de quebra, ainda aprendo palavras novas no Bingo da POCILGA.

    Lindelof é o cara, já tinha mostrado isso em Leftovers e agora mais uma vez. Espetacular o início dessa série.

  2. Ótimo texto Mário! Estou com a série aqui a algum tempo e finalmente peguei o piloto pra assistir. Fiquei meio perdido no meio da história e por isso procurei por resenhas na tentativa de entender um pouco mais mais antes de continuar. Seu texto me ajudou a esclarecer vários pontos e também ajudou a empolgar ainda mais.
    Abraços!

  3. Finalmente comecei a assistir e achei esse 1º episódio sensacional.
    O texto de MB faz uma reflexão muito boa sobre o episódio, parabéns.
    Uma outra coisa que me chamou a atenção são as pequenas referencias ao universo da HQ de Watchmen, mas eles não se prendem a isso.
    E achei a trilha sonora sensacional!

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