Boruto – Primeiras impressões: A dinâmica edipiana na continuação de Naruto.

Boruto – Primeiras impressões: A dinâmica edipiana na continuação de Naruto.

Boruto: Naruto next generation é um spin-off continuação da aclamada série de mangá e anime, Naruto. A série tem como protagonista Boruto, filho de Naruto, e se passa algum tempo após Naruto finalmente se tornar Hokage (titulação máxima entre os ninjas da vila da folha). Os dois primeiros episódios apontam que muito da narrativa estará pautada na relação entre pai e filho. Freud, o pai da psicanálise, foi o primeiro a trazer à tona a relevância da relação paternal para a formação da identidade da criança. Vamos, então, praticar uma acrobacia mental e imaginar o que Freud pode nos oferecer para interpretar a série Boruto. Mas, não antes de algumas considerações.

Por que uma continuação de Naruto?

Naruto é um shonen, isto é, uma série voltada para o público infanto-juvenil e com um grande apelo comercial direcionado para a venda de jogos, bonecos, roupas etc. O mercado de shonens passa por uma grande crise. Durante os anos noventa diversos desenhos como Cavaleiros do Zodíaco, Yu Yu Hakusho, Dragon Ball, dentre outros popularizaram os animes, especialmente os shonens, em boa parte do mundo. Alguns anos depois com Pokémon e Digimon o estilo se firmou na cultura jovem em diversos países, inclusive no Brasil. Naruto é uma obra que compõe a onda seguinte de animes junto com Bleach e One piece. Com o fim desta última geração, nenhum mangá/anime parece poder cumprir o papel de ser a próxima “febre” entre os entusiastas da cultura japonesa. Nesse cenário, Boruto surge como uma boa aposta com uma nova série de histórias dentro de um universo já muito famoso. É um spin-off porque é uma narrativa derivada de outra história e ao mesmo tempo é uma continuação porque pretende dar continuidade a linha do tempo, ainda que em um referencial de outro personagem principal.

Vendo o vácuo do mercado, os produtores da série devem ter pensado que uma ótima forma de fazer uma franquia de sucesso seria recuperar uma outra franquia de sucesso que, no caso ainda está muito fresca na cabeça dos fãs ainda órfãos com o final de Naruto. O estúdio responsável pela série parece seguir uma tendência dos filmes hollywoodianos de explorar ao máximo as franquias de sucesso fazendo spin-offs, remakes, reboots, etc. A experiência, no entanto, nos mostrou que, infelizmente, nem sempre saem boas obras dessa tática conservadora e um tanto quanto preguiçosa.

Primeiras impressões.

Até agora, com dois episódios, já podemos ter uma noção do tom da série. Logo de início somos apresentados a Boruto, um jovem rebelde que não liga muito para seguir regras (não por acaso tais características serviriam também para definir o seu pai em sua infância). Em sua fase adulta, porém, Naruto nos é apresentado como um workaholic ocupado com burocracias e com pouco tempo para oferecer para a família. O jovem Boruto possui uma posição de indiferença com o pai (mas de muito respeito com a mãe), mostrando-se incomodado de estar na sombra do grande Hokage. Ao mesmo tempo que demonstra aversão em seguir o caminho de Naruto, o filho mostra diversas semelhanças com a atitudes do pai ao ponto de copiar algumas coisas. Boruto, por exemplo, é um dos poucos ninjas que dominam a técnica kage bunshin no jutsu marca registrada de seu pai.

Brevíssima apresentação da dinâmica edipiana.

Obviamente não é o intuito deste texto desenvolver a teoria freudiana com todas suas nuances. Um tanto quanto desrespeitosamente, irei retalhar o pensamento freudiano e tentar apresentar o ponto que interessa a este texto.

A dinâmica edipiana proposta por Freud está baseada fortemente na alegoria do parricídio. A ideia da morte do pai está presente desde os primórdios da civilização greco-romana ocidental. O psicanalista recorre à peça trágica grega de Sófocles, Édipo Rei onde o protagonista (sem saber) assassina o pai e casa com a própria mãe. A história grega, contudo, possui outras narrativas que versam sobre a vontade de assassinar o pai e tomar o seu lugar, como no mito da destruição de Cronos, onde este é destronado pelo seu filho Zeus.[1] E a vontade de matar o pai se repete ao longo da história, como em Os irmãos Karamazov de Dostoievski[2], ou de forma mais suave em Carta ao Pai de Kafka.[3] O que surge de interessante com a alegoria do parricídio, talvez não seja exatamente a vontade de assassinar o pai, mas o que significa matar o pai simbolicamente. O “pai” é um símbolo que representa a figura que comanda, o macho alfa, o líder e etc. Nessa dinâmica, o filho ao mesmo tempo odeia e inveja o pai. Ele sente amor pelo pai, também se sente oprimido. Essa ambivalência de sentimentos faz com que o filho cometa o parricídio, mas depois assuma pra si os seus valores. Ele assume o lugar do progenitor e começa a agir como ele. Em outras palavras, o filho anseia por sair do jugo do pai (matar o pai), se tornar independente, mas quando enfim consegue, se torna aquele que matou.

Agora sim- O parricídio em Boruto.

A dinâmica edipiana começa ainda no começo da série Naruto. Mas Naruto é órfão, como então se encaixaria o parricídio se não há um pai? Como apontado anteriormente, vimos que o “pai” é uma ideia. No caso da série em questão, o primeiro ninja a estabelecer uma relação paternal com Naruto foi o seu professor, Iruka. A sua postura com a criança Naruto ansiava a firmeza, mas era muito baseada em condolência e certa leniência. A próxima figura paterna na vida do sétimo Hokage foi Kakashi. Em uma fase adolescente, Naruto teve um tutor rígido e distante, muito diferente do primeiro. Após este, o lendário Jiraya assume o posto de tutoria de um Naruto já mais maduro, que muitas vezes cobrava do seu professor os ensinamentos. A evolução do protagonista é relacionada com as mudanças dos seus professores que, em grande medida, são também suas figuras paternas. Vimos um docente de educação infantil preocupado em “cuidar” e proteger, depois um professor duro que o levou até o limite pra extrair o seu máximo e após isso, um orientador que o coloca na vida adulta.

Ao terminar esse percurso e finalmente realizar seu sonho de ser um Hokage, Naruto se torna uma pessoa diferente do que sempre foi. A criança e o adolescente brincalhão se transformam em um adulto viciado em trabalho. Essa é justamente a dinâmica edipiana. O jovem Naruto odiava e invejava a postura dos ninjas mais velhos, e a partir do ponto que os supera repete a forma de agir dos seus antigos mestres que lhe cobravam seriedade e disciplina. Naruto, então, torna-se tudo aquilo que sempre odiou.

Boruto, em sua relação conflituosa com seu pai dá continuidade a essa dinâmica. Ele também inveja e odeia o pai. Ele vocifera que não quer ser como pai, mas aprende a técnica que é a sua marca registrada. Não quer ser o pai, mas segue os mesmos passos. Desobedece sistematicamente ao genitor, mas acata tudo que é dito pela mãe. Boruto, que vive à sombra do grande Hokage quer matar o pai para assumir seu lugar, assumindo uma identidade independente da história da sua família. Se na história anterior Naruto lutava para não ser comparado com o demônio Kyuubi que habitava seu corpo, agora o seu filho luta para não ser uma cópia do seu pai. Da mesma forma que o personagem título, a série Boruto também luta para não ser simplesmente uma cópia da obra da onde veio. Para isso, o anime aposta numa estrutura político-econômica diferente. Com o fim das guerras ninja, toda a estrutura da sociedade se transformou, de modo que a classe dos ninjas já não é algo tão relevante na sociedade.

A ideia de uma mudança estrutural na civilização é interessante pois permite abertura para que várias coisas possam acontecer. Agora resta-nos acompanhar para saber se a série filha vai se emancipar do seu anime pai. No mais…será que Naruto vai continuar sendo um burocrata ou o desenho vai nos mostrar que amadurecer não necessariamente é sinônimo de encaretar.  

 

[1] O mito conta que Cronos, preocupado em perder o trono para seus filhos, passa a devorá-los. Porém, Zeus consegue escapar desse destino e posteriormente assassina o pai libertando os seus irmãos e dando origem a uma nova geração de deuses, os olímpicos.

[2] O livro conta a história de uma relação conturbada entre pais e filhos que chega ao ápice com uma briga por questões financeiras e uma disputa por uma mulher onde o filho mata o pai.

[3] Em uma carta, o autor desnuda a problemática da relação paternal confessando e revelando coisas ao seu pai.

Cristian Arão

Assiste uns filmes e umas séries, lê uns livros e uns quadrinhos e gosta de conversar e escrever sobre essas coisas. Tirado a filósofo, tem mania de fazer interpretação filosófica de quase tudo. Anarquista e usuário de marxismo, possui especial apreço pelas distopias e pira nas narrativas sobre crítica social. Excepcionalmente nesta descrição refere-se a si mesmo na terceira pessoa.

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