Crítica | Deslembro

Crítica | Deslembro

O Brasil é um país sem memória e dessa forma está fadado a cometer o mesmo erro durante a sua história. Estamos em 2019 e a importância de um filme como Deslembro é fundamental para entender como chegamos nessa situação. O longa escrito e dirigido por Flávia Castro fala da importância das lembranças ao apresentar a jornada de Joana, uma adolescente que vive com a família na França – exilada durante a Ditadura Militar – que agora tem a oportunidade de voltar para terras brasileiras por causa da anistia.

A reação inicial de Joana é de não querer voltar para o Brasil já que ela sabe dos horrores que estavam ocorrendo no país. Mas para sua mãe é a chance de retornar para a sua terra natal. A trama acompanha a jornada de retorno dessa jovem e seu reencontro com as próprias raízes – experiência ainda mais impactante se considerados os desafios inerente à adolescência, uma fase de transformação para a vida adulta. Enquanto a protagonista encara um processo de autodescoberta em busca da sua própria identidade e do seu passado, também precisa enfrentar o amadurecimento.

A ditadura militar é um tema complexo e complicado. Talvez justamente por isso é evitado pela maioria das pessoas. Porém, há quem enxergue o período com bons olhos, ignorando totalmente o lado cruel e sombrio do regime. Por isso, ao tocar nesse tema – mesmo que de forma indireta, Deslembro é importante e apropriado para o contexto político atual. A protagonista está o tempo todo questionando sua mãe sobre o que ocorreu com seu pai, que é um desaparecido político declarado morto. O drama e a angústia vivenciados por elas, infelizmente, é a realidade enfrentada por muitas famílias brasileiras que até hoje não tiveram respostas sobre o paradeiro de parentes desaparecidos.

A família de Joana é um retrato interessante dessa realidade, que também é comum a outros países da América Latina. Sua mãe se juntou com um homem chileno, que já tinha um filho, e assim como ela foi para a França em busca de exílio. Juntos, eles tiveram um outro filho. A dinâmica entre eles é interessante, onde em parte eles se comunicam em francês, outros momentos em português e também em espanhol. E a forma ou a língua que eles utilizam falam bastante sobre como cada personagem está se sentindo. Por exemplo, Joana fala em francês com a mãe Ana, que responde em inglês, mas quando a mãe responde também em francês fica claro que ela perdeu a paciência e quer explicar algo de forma que a filha realmente entenda.

No entanto, o mais interessante de Deslembro é a forma como ele constrói a reconexão de Joana com o Brasil. Isso é feito principalmente através de músicas e sons, onde a jovem que gosta de rock de bandas como The Doors, encontra no samba uma memória que não sabia que tinha. As conversas com a avó, que conta sobre o pai que ela praticamente não lembra, também contribuem para fomentar sua memória.

Tecnicamente, o filme também investe em uma “simulação” da memória, através de uma montagem que apresenta flashs rápidos de lembranças da protagonista – meio fragmentada, ou através do desenho de som que mistura os diálogos com sons orgânicos – como se a personagem estivesse lembrando de algo sem ter certeza de como exatamente aquilo ocorreu. A fotografia também é importante na construção de Joana, apresentando a jovem no canto da tela em alguns momentos, deixando claro o seu isolamento com o mundo ao seu redor. A diretora também investe em planos fechados para captar a intimidade dos personagens, deixando claro que estamos diante de uma narrativa contemplativa e intimista, e ao mesmo tempo muito poética.

A jovem Jeanne Boudier entrega uma atuação impressionante com muito talento e carisma, conseguindo passar com total verossimilhança o amadurecimento de sua personagem. Um papel difícil que a atriz construiu de forma esplêndida. O restante do elenco também está muito bem e sem dúvidas o principal destaque é Eliane Giardini como a avó.

Deslembro é um filme sobre a importância da memória e de como isso é fundamental no Brasil atual. A jornada de Joana no seu retorno ao país na época da ditadura é importante para falar sobre o impacto do período na vida das pessoas. Reforça que muitas delas não eram o que o regime classificava de “terroristas”. Eram apenas cidadãos comuns que não tinham nada a ver com o conflito ideológico e político instaurado no país. A família dos que escolheram lutar nesse cenário sofreram e muito – fato que jamais deve ser esquecido, para não se repetir.


Uma frase: – Joana: “Não quero ir para esse teus país de merda.”

Uma cena: Quando Joana vai na praia.

Uma curiosidade: Dirigido pela brasileira Flávia Castro, Deslembro foi o único representante brasileiro selecionado na mostra Orizzonti do 75º Festival de Veneza.


Deslembro

Direção: Flávia Castro
Roteiro:
Flávia Castro
Elenco: Jeanne Boudier, Sara Antunes, Hugo Abranches, Julián Marras, Arthur Raynaud, Jesuita Barbosa, Marcio Vito e Eliane Giardini
Gênero: Drama
Ano: 2018
Duração: 96 minutos

Ramon Prates

Analista de sistemas nascido em Salvador (BA) em 1980, mas atualmente morando em Brasília (DF). Cinema é sem dúvidas o meu hobby favorito. Assisto a filmes desde pequeno influenciado principalmente por meus pais e meu avô materno. Em seguida vem a música, principalmente rock e pop.

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