Crítica | Human Flow: Não Existe Lar se Não Há Para Onde Ir (2017)

Crítica | Human Flow: Não Existe Lar se Não Há Para Onde Ir (2017)

Human Flow, documentário do diretor Ai Weiwei, expõe um olhar constrangedor e doloroso sobre um dos maiores desafios da humanidade.

Não é raro que a maioria das pessoas não saiba diferenciar as categorias de refugiados de imigrantes. Assim, normalmente abordam o problema de uma das maiores crises humanitárias da história da humanidade de uma perspectiva bastante equivocada que costuma ser carregada de preconceito.

A raiz desse preconceito, em geral, reside na noção de “imigrante ilegal”, normalmente associada a um ato volitivo de um indivíduo que, ao desafiar a soberania de determinado estado, migra para o mesmo ignorando suas exigências legais. Tal conduta parece sempre acompanhar uma pressuposição de que a imigração nesses termos sempre tende a trazer prejuízos sociais e econômicos aos residentes desses estados. O temor do terrorismo apenas ampliou o espaço do preconceito nas últimas décadas, simplesmente levando o senso comum a considerar todo e qualquer imigrante ilegal como um risco em potencial à segurança nacional.

Para além da crítica a essas pressuposições relacionadas à categoria de imigrante, enfim, reside um problema básico relacionado a uma diferenciação, ao menos normativa jurídica, desta categoria de imigrante. A categoria de imigrante, como já apontado, costuma acomodar indivíduos que aparentemente optaram por deixar seus países. Os refugiados foram forçados, pelas mais diversas circunstâncias, normalmente para garantir sua própria sobrevivência, a deixar suas terras natais. É essa, em linhas gerais, a classificação prevista pelos tratados de direitos humanos e internacionais que surgiram na Europa ao longo do século XX.

Logo no princípio de Human Flow, o diretor e ativista Ai Weiwei parece ter mesmo essa preocupação didática em demonstrar as diferenças entre essas categorias. Porém, com o tempo, essa preocupação se revela apenas como a superfície de uma obra profunda e desconcertante que, mais do que diferenciar as fronteiras entre categorias, ou mesmo nações, tem sobretudo o objetivo e o fim de nublá-las.

Ai Weiwei desde o primeiro take de Human Flow impõe uma narrativa lenta e cadenciada, ocupada por longos silêncios. O filme não possui qualquer narração em off e se limita, de forma muito inteligente, a mostrar e não falar. Assim a plateia vai formando suas próprias conclusões acerca de um problema que é maior do que qualquer palavra ou direcionamento político e ideológico fosse capaz de dar conta. Claro que a posição política de Weiwei é evidente e bem demarcada ao longo de todo o documentário. Porém, como um bom debatedor, Weiwei parece querer dar espaço para que cada um tire suas próprias conclusões.

Human Flow é uma experiência dolorosa, porém bem menos dolorosa do que aquelas vividas pelas personagens do outro lado da lente do diretor. Weiwei abusa de planos longos em cada um dos personagens como que necessitando nos lembrar de que ali há seres humanos como cada um de nós, com mais semelhanças do que diferenças. É emblemático, por exemplo, ver um pequeno garoto refugiado Sírio vestindo uma camisa de Naruto. Weiwei ainda não hesita em se tornar um personagem também e assim estende um profundo respeito àquelas pessoas que filma, quase que garantindo que elas não sejam meros instrumentos em seu documentário. Em nenhum momento, assim, Weiwei parece perder de vista o principal objeto de seu documentário: a humanidade, com tudo de belo e aterrorizante que essa palavra possa trazer.

A mencionada cadência do filme causa um estranhamento e pode incomodar a maioria dos espectadores. Porém, a condução nesses termos não é acidental. Graças a forma com que conduz sua câmera e edita o documentário Weiwei é capaz de envolver Human Flow em uma serenidade quase zen que se torna avassaladora à medida que os temas, conflitos e imagens mostrados falam por si só.

E não é apenas o ritmo lento e arrastado que incomoda. Cada imagem e situação apresentada é cuidadosamente explorada, como uma surpreendente delicadeza para com o público, para tirá-lo de sua zona de conforto. É como se, ao ampliar a serenidade para a audiência, o diretor e ativista reforçasse a culpa e a responsabilidade de cada um de nós pelos desastres e tragédias, nada naturais, que acometem outros seres humanos. É difícil assistir a Human Flow até o fim, porém, nos dias atuais, é mais do que urgentemente necessário.

Assim, o que aparenta ser uma exposição crua da crise dos refugiados que se impõe como a maior tragédia da humanidade desde o fim da segunda grande guerra, logo avança questionar a própria categoria que, a princípio, deveria ser tão claramente demarcada. Em um movimento que se assemelha a uma espiral descendente que se aprofunda no sentido das coisas, Weiwei questiona o que significa ser um refugiado. Seria apenas aquele que foge de guerras, destruição e perseguição de toda sorte em busca de sobrevivência? Ou haveria, sobretudo, uma base econômica que explique o fato que leve alguém a banir a si próprio de sua terra natal, se auto-infligindo uma das maiores punições que o mundo da antiguidade prescrevia a um criminoso.

Em outras palavras, é possível chamar de imigrante alguém que deixa seu país, ainda que não assolado por guerras e intempéries climáticas, porém flagelado pela pobreza e desigualdade social, em busca de uma mínima perspectiva de dignidade? Ou seria ele um refugiado no sentido mais próprio da palavra?

Se o mundo é apenas um, e somos todos uma única espécie humana sobre o planeta, não exige muito esforço para que nos identifiquemos com cada um dos personagens mostrados nos longos planos fechados de Weiwei. E assim, não é difícil reconhecer que a busca por dignidade é e sempre será uma busca desesperadoramente legítima, não havendo como, em sã consciência, não reconhecer que não foi simplesmente a vontade daquele indivíduo que o levou a buscar melhores chances de vida em uma terra longe daquela em que nasceu.

Human Flow, assim, de forma inclemente e estranhamente suave, não poupa seu espectador de toda a crueza de um mundo que se define por uma tensão aparentemente cada vez mais insustentável entre o humano e o desumano. Ai Weiwei simplesmente arrasta sua audiência, com muita delicadeza e tranquilidade, para uma reflexão que provavelmente a levará a jamais encarar a si mesmo, o mundo e a própria humanidade com outros olhos.


Uma frase: Todas as citações de poetas de diversas religiões que aparecem ao longo do filme.

Uma cena: Diversas cenas. Difícil escolher uma.

Uma curiosidade: Muitas vezes, durante o filme, seu cérebro vai tentar se distanciar daquela trágica realidade. Não será incomum que uma cena seja observada com um distanciamento e surpresa pela aparente “qualidade dos efeitos especiais”. Bem, não são efeitos especiais. Aquelas imagens são verdadeiras. É um documentário.

 


Human Flow

Direção: Ai Weiwei
Roteiro: Chin-Chin YapTim Finch e Boris Cheshirkov
Elenco: Ai WeiweiIsraa AbboudHiba AbedRami Abu SondosAsmaa Al-Bahiyya
Gênero: Documentário
Ano: 2017
Duração: 140 minutos.
Graus de KB: 3 –  Ai Weiwei esteve em Ai Weiwei: Never Sorry dirigido por Alison Klayman que também dirigiu o curta The 100 Years Show (2015) no qual James Packer atuou como produtor, que também produziu Aliança do Crime (2015) do qual Kevin Bacon participou como ator.

 

 



 

Mário Bastos

Quadrinista e escritor frustrado (como vocês bem sabem esses são os "melhores" críticos). Amante de histórias de ficção histórica, ficção científica e fantasia, gostaria de escrever como Neil Gaiman, Grant Morrison, Bernard Cornwell ou Alan Moore, mas tudo que consegue fazer mesmo é mestrar RPG para seus amigos nerds há mais de vinte anos. Nas horas vagas é filósofo e professor.

2 comentários sobre “Crítica | Human Flow: Não Existe Lar se Não Há Para Onde Ir (2017)

  1. Demorei de ver mas não deixei de fazer questão de ler a sua excelente crítica Dr. MB. É um filme que bate mesmo no fundo da alma e que expõem um dos maiores problemas que o mundo enfrenta e ainda vai enfrentar de forma mais severa num futuro não tão longíquo.

    A cena que me pegou foi a do Tigre, enjaulado e fora do seu lar assim como os que vivem (por anos e anos e anos…) enjaulados na faixa de gaza. O animal merecidamente teve direito a voltar a um habitat melhor pra ele, mas e as outras pessoas?

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