Review | Doctor Who 9×09: Sleep no More

Review | Doctor Who 9×09: Sleep no More

Quando o ato de dormir e sonhar é retirado do homem, por ser um incômodo inconveniente à produtividade, a carência de sonhos faz nossos pesadelos tomarem forma e nos consumir.

Esse é o primeiro episódio da temporada que não é em duas partes. E isso acaba favorecendo seu resultado final. Afinal, trata-se de um boa e velha história de horror espacial, que Doctor Who sabe, trabalhar muito bem. O horror, a propósito, está presente tanto no enredo e estrutura do episódio, quanto nos simbolismos evocados.

Nada mais aterrador, penso eu, numa humanidade que tão tomada pelo consumo e pelo trabalho que chega ao ponto de desenvolver uma tecnologia para não mais dormir. O sono tratado como um mero empecilho biológico à nossa produtividade. É a partir dessa premissa genial e simples que Mark Gatiss desenvolve um dos roteiros mais ricos da temporada até agora.

E não é exagero algum salientar a riqueza do roteiro. Deixe-me ver se consigo lembrar da maior parte apenas do background criado por Gatiss nesse episódio.

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Um futuro sem sonhos

Estamos no século 38. Após uma grande catástrofe que alterou dramaticamente a geografia do planeta a Índia e Japão praticamente se fundiram em uma única cultura politeísta que tornou-se a dominante da humanidade. Eventualmente o planeta for destruído e a humanidade persistiu vivendo em colônias. Uma dessas colônias é em Tritão, lua de Netuno. Na órbita de Netuno a estação espacial Le Verrier ficou misteriosamente muda há 24hs e um grupo de quatro soldados é enviado para investigar. Um desses soldados, 474, é um Grunt, um clone de baixa inteligência criado especialmente para combate. Personagem que inclusive foi interpretado pela transgênero Bethany Black.

Na estação o grupo encontra o Doutor e Clara, e não demora a perceberem que há algo muito errado ali. Criaturas estranhas parecem ter eliminado todos os tripulantes da estação, com a exceção do Professor Rassmussen (Reece Shearsmith) o chefe científico do projeto Morpheus. Apesar da humanidade ter passado por imensa catástrofe ela se recuperou e atualmente, como um holovideo afirma, vive uma era de ouro e o período de maior prosperidade da sua história. Uma prosperidade relacionada ao projeto Morpheus, ao que tudo indica.

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O projeto Morpheus é um procedimento de supressão de sono. As pessoas entram em uma cápsula na qual, após apenas alguns minutos, suprem a necessidade biológica do organismo de dormir, ao som do clássico Mr. Sandman, cantado pelas Chordettes. Sem dormir as pessoas podem se tornar mais produtivas, leia-se, podem trabalhar e consumir mais, de maneira praticamente incansável. É o máximo da instrumentalização humana a serviço do capital industrial reduzindo o homem a uma ferramenta de produção, e Doctor Who, cumprindo sua função de ficção científica, sabe bem como denunciar essa ideia.

Mas o sono não se resume a apenas uma necessidade biológica. Ou pelo menos é isso que o episódio parece querer sugerir. Desprovido de sonhos, o ser humano é dominado e consumido por monstros que surgem das sobras do que somos. No episódio esses monstros tomam a forma dos Sandmen, criaturas geradas a partir da “areia” – os países anglófonos chama a nossa famosa remelinha de canto de olho de sand (areia) daí o nome em inglês do Sandman, ou João Pestana – que parecem, a princípio, irracionais e movidas apenas pela necessidade de consumir seres humanos.

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A Bruxa do Doctor Who

Mas na verdade boa parte dessas questões envolvendo os monstros são muito mais sugeridas do que explicadas. Isso se deve à estrutura do episódio que ousadamente é totalmente feito no estilo found footage, similar ao visto em filmes como A Bruxa de Blair (1999) e Cloverfield: Monstro (2008). Isso proporciona cenas nas quais a presença magnética de Peter Capaldi na tela é bastante valorizada. Quando o Doutor olha e conversa com você é impossível não ficar atento.

Todavia o diretor Justin Molotnikov não demonstra a habilidade necessária para conduzir um episódio inteiro nesse estilo. É inevitável fazer comparações com o excelente já clássico Blink, no qual os Weeping Angels são introduzidos. Lamentavelmente o resultado que se produz não se aproxima daquele. E é preciso saber trabalhar bem a câmera para conduzir de maneira apropriada esse tipo de proposta narrativa, sob pena de se prejudicar bastante o resultado final. Assim, nunca fica muito claro as situações relacionadas aos Sandmen.

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Doctor Who e seus Monstros da semana

Claro, é bem possível que isso seja proposital. Deixar lacunas que devem ser preenchidas pela audiência e concomitantemente evocar um clima onírico, que parece ser o cerne desse episódio. Mas ainda assim, a forma como que o episódio é conduzido acabam gerando uma lacuna na narrativa que incomoda.

Isso porquê a premissa, lançada pelo Doutor (evidentemente) que deveria explicar a origem das criaturas, as relacionando como efeito direto do projeto Morpheus, exige um certo reforço na nossa suspensão da descrença. Também há o fato da confusa natureza das habilidades e extensão das habilidades dos Sandmen e como elas são usadas para explicar a estrutura de found footage. Tudo isso compromete bastante um episódio que poderia ser bem melhor.

Os monstros de Doctor Who são conhecidos por parecerem margearem a fronteira entre o lúdico e o absurdo. É como se a série apostasse na, por vezes simplória, caracterização de suas criaturas para impulsionar a suspensão da descrença para o nível que o conteúdo dos roteiros de Doctor Who normalmente exige. O monstros são aparentemente tão (propositalmente) ridículos que tudo o mais torna-se plausível e aceitável e embarcamos na jornada. Com isso Doctor who também consegue romper com a estrutura padrão de monstros da semana, que tanto acomete outras séries. Muito porquê sabemos, graças a opção de caracterização mencionada, que os monstros em questão são muito mais alegorias que servem a carregar a mensagem principal do roteiro.

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Nesse sentido os Sandmen se encaixam perfeitamente na tradição de monstros de Doctor Who. Mas como tudo acerca deles é tão confuso, pelo menos para os fins de um episódio que se sustenta tanto em sua relação com a origem dos mesmos, mais do que a suspensão da descrença é acentuadamente demandada; a atenção é também bastante demandada. Atenção em um certo nível que acaba nos levando a nos incomodar com certos aparentes buracos do roteiro e que comprometem a fluidez do episódio.

Macbeth e o problema das camisas vermelhas

Um bom episódio de horror espacial demanda um bom elenco de apoio. Os famosos camisas vermelhas de Star Trek que estão lá para morrer apenas, já que sabemos que nada acontecerá com os personagens principais. Nesse episódio isso é um grande problema, já que nem diretor nem roteirista conseguem promover a empatia da audiência com o grupo de soldados enviado para investigar o que aconteceu na estação espacial Le Verrier. Da mesma forma falta empatia a Jenna Coleman em um episódio onde o Doutor e o Professor Rassmussen roubam a cena.

Mas o episódio acerta ao recorrer a referências shakespearianas. Difícil errar quando se invoca o auxílio do bardo inglês. O título do episódio, Sleep no More, é retirado de uma fala de Macbeth, uma das obras mais fortes e cheias de lirismos de Shakespeare. E colocar a própria fala em questão para ser declamada por Peter Capaldi é de um dos grandes momentos do episódio. Aliás, reforçar o tom lírico além de contribuir positivamente ajuda a realçar o tom inírico que, como já disse antes, o episódio parece querer, sub-repticiamente mesmo, evocar.

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Sleep no More é, assim, um episódio muito bom, que em nada mancha a ótima nona temporada da série. Mas algumas pequenas falhas de roteiro e de direção comprometem um resultado que poderia ser muito melhor. Ainda assim, as últimas cenas conseguem, de forma bem competente, imprimir o clima de horror que ao longo de todo o episódio parece faltar. A sensação que fica é que não despertamos de um pesadelo, mas despertamos para um pesadelo, que na falta do sonhar, será aparentemente interminável.



Posters-TheMagicianApprenticeSérie: Doctor Who
Temporada:
Episódio: 09
Título: Sleep no More
Roteiro: Mark Gatiss
Direção: Justin Molotnikov
Elenco: Peter Capaldi, Jenna Coleman, Reece Shearsmith, Elaine Tan e Bethany Black.
Exibição original: 14 de Novembro de 2015 – BBC One
Graus de Kevin Bacon: 2 Reece Shearsmith esteve em O Guia do Mochileiro das Galáxias (2005) juntamente com Sam Rockwell que atuou em Frost/Nixon (2008) com Kevin Bacon.


Mário Bastos

Quadrinista e escritor frustrado (como vocês bem sabem esses são os "melhores" críticos). Amante de histórias de ficção histórica, ficção científica e fantasia, gostaria de escrever como Neil Gaiman, Grant Morrison, Bernard Cornwell ou Alan Moore, mas tudo que consegue fazer mesmo é mestrar RPG para seus amigos nerds há mais de vinte anos. Nas horas vagas é filósofo e professor.

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