Crítica | Uma Batalha Após a Outra

Adaptar Thomas Pynchon nunca foi tarefa simples. Sua prosa fragmentada, carregada de humor paranoico e caos lisérgico, parecia condenada a permanecer restrita às páginas. Mas Paul Thomas Anderson, cineasta que já havia experimentado esse terreno em Vício Inerente, volta agora a mergulhar no labirinto pynchoniano com Uma Batalha Após a Outra. O resultado é um filme que não apenas traduz, mas encarna a pulsação febril de Vineland, transportando para a tela grande um universo em que a política, a memória e os excessos da contracultura se misturam numa colagem hipnótica.
Se Vício Inerente tinha uma melancolia entorpecida, aqui PTA busca outra textura: uma comédia sombria que oscila entre sátira política e delírio alucinatório. O espectador é lançado num turbilhão de imagens que parecem tanto narrativas quanto espectrais, com ecos de paranoia que remetem à estética dos anos 80 pairando como sombra insistente — embora a narrativa se desenrole num presente ou futuro muito próximo, marcado por um intervalo temporal de 16 anos. PTA filma como quem monta um mosaico — as peças não se encaixam de imediato, mas sugerem um todo maior, como se o próprio cinema imitasse o gesto literário de Pynchon.

A ambientação é um espetáculo à parte. As ruas suburbanas, as reuniões secretas de militantes, as televisões cuspindo propaganda oca: tudo soa simultaneamente realista e distorcido, como um sonho prestes a virar pesadelo. Há uma cadência hipnótica nos enquadramentos e uma câmera que desliza como se fosse guiada por uma consciência alterada, refletindo o estado febril dos personagens.
O roteiro condensa a trama de Vineland sem domesticá-la. PTA não busca clareza, mas intensidade. O espectador é convidado a vagar pelo filme como quem atravessa um terreno cheio de armadilhas: cada diálogo, cada lembrança e cada gesto político ecoa em camadas, questionando a fragilidade da memória e a manipulação do poder. Essa recusa em oferecer respostas fáceis é também a maior fidelidade ao espírito pynchoniano.
Tecnicamente, o filme é exuberante. A fotografia brinca com contrastes — cores saturadas que lembram a estética televisiva da época, cortadas por sombras densas que remetem a um noir paranoico. A trilha sonora, misturando colagens sonoras e hits deslocados, cria uma sensação de estranhamento constante. E a montagem se permite cortes abruptos, costurando o filme como quem salta entre lembranças mal organizadas.

O elenco é um caso à parte. Leonardo DiCaprio encontra aqui um dos papéis mais ousados de sua carreira, oscilando entre a fúria e o cansaço, como se sua própria presença fosse corroída pela História. Benicio Del Toro surge como força bruta e vulnerável, um corpo em transe dentro do caos. Chase Infiniti faz aqui uma estreia impressionante, exibindo um frescor inesperado e uma presença intensa que contrasta com a estatura de DiCaprio, revelando uma maturidade surpreendente para uma jovem atriz. Já Teyana Taylor, mesmo com pouco tempo de tela, marca presença com uma personagem forte, magnética e carregada de energia, deixando uma lembrança viva mesmo quando a narrativa já seguiu adiante. E Sean Penn encarna uma caricatura sombria do poder, uma figura que parece saída de um pesadelo midiático.
No fim, Uma Batalha Após a Outra não é sobre vencer ou perder, mas sobre o eterno atoleiro das lutas políticas, pessoais e culturais. Mas o que mais se destaca é a própria genialidade de Paul Thomas Anderson. É o olhar do cineasta que encontra arte nos enquadramentos mais simples, transformando cada frame em uma pequena história, carregada de discussão política ou de sátira. Sátira essa, inclemente, que surge como a melhor arma capaz de derrotar e humilhar os vilões que parecem ter tomado de assalto nossa realidade recente. PTA nos oferece um presente raro: um momento de catarse social e política em um mundo conflagrado, cínico e apático, marcado pela desesperança.

Após assistir Uma Batalha Após a Outra uma curiosa sensação de exaustão diante das nossas pequenas batalhas cotidianas se mistura com um estranho alívio — a percepção de que talvez nada seja tão irreversível a ponto de se tornar uma tragédia incontornável. Entre os abismos de incomunicabilidade e choque geracional, persiste a possibilidade de superação, de resgatar a relação entre pai e filha, revelando uma beleza inesperada no meio do caos.

Uma frase: – “Eu fui violentado ao contrário.”
Uma cena: Bob tenta lembrar da hora certa.
Uma curiosidade: Este é o segundo mergulho de Paul Thomas Anderson no universo de Pynchon, depois de Vício Inerente (2014). O escritor, recluso, teria enviado bilhetes manuscritos ao diretor com comentários sobre a adaptação.

Uma Batalha Após a Outra (One battle after another)
Direção: Paul Thomas Anderson
Roteiro: Josh Friedman, Eric Pearson e Jeff Kaplan
Elenco: Leonardo DiCaprio, Sean Penn, Benicio Del Toro, Regina Hall, Chase Infiniti e Teyana Taylor
Gênero: Humor negro; Thriller político
Ano: 2025
Duração: 161 minutos