Expresso do Amanhã: Marxismo Full Throttle
Os remanescentes da humanidade sobrevivem presos em uma máquina que se move ininterruptamente enquanto o mundo lá fora é um deserto estéril gelado, sepultado pelos próprios atos da humanidade. Dessa forma o mundo da humanidade se torna a máquina. Uma máquina que precisa manter o seu movimento contínuo para sustentar o próprio sistema que a criou e para tanto necessita transformar os seus passageiros e tripulantes em partes de sua engrenagem, que como peças, precisam estar em posições predeterminadas para que a máquina siga se movendo.
Essa é a premissa básica de Expresso do Amanhã (Snowpiercer, 2013) do inventivo diretor sul-coreano Joon-ho Bong (O Hospedeiro, 2006), mas bem que poderia ser uma bela descrição da sociedade de massas consumista na qual a sociedade contemporânea se vê inserido. No filme a máquina é um trem. Um dos grandes símbolos do engenho mecanicista humano e da segunda revolução industrial que transformou o mundo e o capitalismo a partir do século XIX. Uma imensa locomotiva que há 17 anos circula o globo com os últimos remanescentes da humanidade. Os da sessão da cauda vivem oprimidos e em condições sub-humanas, efetivamente sobrevivendo, e sustentando a vida de luxos e confortos da parte dianteira, daqueles que controlam o motor. Aqueles que vivem na cauda – os sapatos, que não podem ser usados na cabeça -, frequentemente se rebelam contra esse sistema de exploração e autoritarismo, mas sempre são malsucedidos. As regras da máquina são implacáveis e as punições são severas. Mas a nova revolução que se prepara dessa vez sabe onde as outras falharam. A sangrenta e impiedosa luta de classes que deve se desenvolver vagão a vagão não deve parar até que se chegue à locomotiva. É preciso tomar o motor, pois aquele que controla o motor, controla a máquina.
Tudo isso é mostrado com muito dinamismo, ritmo e um estilo de estetização da violência que parece ser típico do cinema coreano[i] o que marca a assinatura de um diretor que sabe trabalhar muito bem sua câmera, a edição e a montagem. Joon-ho Bong também não deixa de fazer um bom trabalho de direção de atores[ii]. Melhor do que média dos filmes do gênero, que nos brinda com atuações competentes que ajudam a inserir o elemento do drama humano essencial para que a audiência possa se relacionar com uma trama que foge dos parâmetros convencionais mesmo para o gênero. Lembremos que se trata de uma obra de um gênero que costuma recorrer frequentemente a alegorias e simbolismos para entabular debates que em essência tratam de questões humanas de caráter político ou social. O espectador que procurar por justificativas “realistas” para a escolha de um trem como último refúgio da humanidade encontrará apenas frustração e um obstáculo para experimentar uma competente obra do gênero de ficção científica pós-apocalíptico, que se sustenta em uma premissa bem fundamentada, um roteiro bem trabalhado[iii], e um design de produção e fotografia que se destacam por prestar uma clara deferência à genialidade de Terry Gilliam[iv].
Filosofia e política, na base da machadada…
O filme peca, porém, na transição do segundo para o terceiro arco, e no desenrolar desse último. Como uma locomotiva que se acelera e ganha cada vez mais momentum em seu movimento, o Expresso do Amanhã parece se segurar para não descarrilar. O terceiro arco, particularmente, é desenvolvido com uma certa pressa, que, apesar de poder ser considerada proposital em face da proposta, não parece ter sido a melhor alternativa. Seria melhor se o filme representasse outros aspectos da sociedade de consumo -como o faz no vagão escola – em mais uma ou duas cenas mais profundas desenvolvendo melhor o mundo daqueles que vivem nos vagões da frente, e reduzisse um pouco mais o diálogo da cena que antecede o climático final. Ainda assim, o resultado final da obra não se deixa comprometer com isso.
O cineasta Joon-ho Bong, enfim, consegue desenvolver uma ótima obra de ficção científica carregada de um discurso marxista que se desenvolve diante nossos olhos a todo vapor e com tons impactantes – ainda que nem sempre explícitos – de brutalidade, selvageria e violência. Um marxismo full throttle que apresenta uma lúcida crítica à nossa sociedade consumista, que não por acaso é totalmente consumida pelo pensamento mecanicista e pela estratificação humana baseado em parâmetros meritocráticos que pretendem atender a uma cruel lógica de determinismos e exploração, que, como bem sintetiza o protagonista vivido por Chris Evans, costuma ser reforçada por um discurso que se presta apenas às pessoas que estão nos melhores lugares a manter as pessoas que estão nos piores lugares onde estão.
E são as pessoas que estão nos piores lugares, não restam dúvidas, que mantém a máquina em movimento. Escravas de um sistema que incorpora à sua agressiva e desigual estrutura até mesmo a própria crise e a revolução, privando o indivíduo de qualquer perspectiva efetiva de livre-arbítrio. Um movimento que se perpetuará até que o sistema não mais tolere as pressões internas, e vergue sobre o seu próprio peso, trazendo toda a fúria do mundo exterior para completar sua devastação. Que reste, enfim, a esperança de um mundo renascido na branca e pura beleza selvagem de um urso polar sendo contemplado pelo olhar de uma criança.
Título Original: Snowpiercer
Título Nacional: Expresso do Amanhã
Gênero: Sci-fi/Drama/Ação
Ano: 2013
Duração: 126 min
Diretor: Bong Joon-ho
Roteiro: Bong Joon-ho e Kelly Masterson (Adaptação de da Graphic Novel “Le Transperceneige”, de Jacques Lob, Benjamin Legrand e Jean-Marc Rochette)
Elenco: Chris Evans, John Hurt, Octavia Spencer, Jamie Bell, Ed Harris, Kang-ho Song, Alison Pill e Tilda Swinton.
[i] Oldboy, de Chan-wook Park é para mim a grande referência desse estilo. Se você ainda não viu, veja, e compare a cena da luta no vagão contra os soldados encapuzados como carrascos com as cenas de luta de Oldboy.
[ii] O filme conta com um ótimo elenco formado por Chris Evans (Capitão América 2: O Soldado Invernal ), John Hurt (Hellboy), Octavia Spencer (Histórias Cruzadas), Jamie Bell (Billy Elliot), Ed Harris (Pollock), o também coreano Kang-ho Song (O Dia em Que o Porco Caiu no Poço), e as sempre excelentes Alison Pill (The Newsroom) e Tilda Swinton (Doutor Estranho), que merecem todo o destaque por seus personagens. Os coadjuvantes também merecem destaques com boas atuações claramente conduzidas em bem aproveitadas pelo diretor, ainda que com pouco tempo de tela.
[iii] O roteiro desenvolvido por Joon-ho Bong em parceria com Kelly Masterson claramente evoca elementos de outros clássicos de ficção científica como No Mundo de 2020, 1984, Brazil e Os 12 Macacos, de forma muito competente, sem que isso comprometa o ritmo intenso da produção.
[iv] Terry Gilliam, aliás, parece ser uma das grandes referências do filme, como fica claro pela presença de John Hurt na película e pelo seu personagem.
Eu gostei bastante do filme e foi justamente na 3ª parte que eu me convenci de que tinha achado o filme sensacional. Bom texto!
Massa. valeu. Na terceira parte o filme consegue sintetizar bem rápido algumas ideias da sociedade de consumo, mas, sei lá, talvez fosse melhor se aprofundasse um pouco mais. Mas isso não compromete o filme que é de fato uma das grandes surpresas do mercado recente.