Crítica | Green Book: O Guia

Crítica | Green Book: O Guia

Esse texto teve a colaboração de Junio Queiroz

Green Book: O Guia é baseado na história real do nascimento de uma inesperada e duradoura amizade entre o sofisticado pianista negro Don Shirley (Mahershala Ali) e o grosseiro leão de chácara ítalo-americano Tony Vallelonga (Viggo Mortensen). O longa se passa nos EUA do início da década de 1960, durante a turnê do músico pelo sul do país – que ainda vivia sob forte predomínio da segregação racial. Os personagens se aproximam e, juntos, vivem experiências que subvertem preconceitos e transformam suas vidas para sempre.

Com um roteiro bem equilibrado entre humor e drama, o filme de Peter Farrelly consegue transportar o espectador para dentro do banco carona do Cadillac Sedan DeVilles dirigido por Tony, cuja missão principal é fazer com que Don Shirley não perca nenhum de seus concertos agendados pela gravadora. Entre uma parada e outra dessa viagem, a dupla interage, pouco a pouco, em meio a desentendimentos, apuros e situações inusitadas ou constrangedoras.

A química entre Mahershala Ali e Viggo Mortesen traz leveza e verossimilhança à trama. As surpreendentes atuações dos dois carismáticos atores surpreendem e aproximam o público da narrativa. O estilo blasé e pedante do culto e sensível Don Shirley se choca brutalmente com a personalidade pouco polida, durona, racista e bonachona de Tony, apelidado desde criança de Bocudo, por seu modo falastrão. Na colisão dessas diferenças, eles se reconhecem. O preconceito dá lugar à empatia e a amizade se sobrepõe à relação de subserviência profissional.

Tony e Shirley se expõem um para o outro, revelam suas fraquezas e, assim, crescem juntos. Cada um acrescenta um pouco de si na jornada do outro, que se revela a verdadeira e a mais importante viagem do longa. Por isso, é significativa e emblemática a escolha do título do filme, baseado no nome de um guia da vida real que foi publicado durante muitos anos nos EUA para orientar a viagem de motoristas negros pelo país, com indicação de locais específicos para hospedagem e alimentação.

O motorista, nesse caso, é branco. O guia, no entanto, ironicamente serve para indicar quais locais eram “apropriados” à estadia do seu chefe, um reconhecido músico de Jazz – um dos poucos que tocaram na Casa Branca. A história real coloca branco e negro em posições com as quais não estão “acostumados”. O aparente desconforto de Tony – ao se perceber privilegiado – e a inquieta solidão de Don Shirley revelam muito da individualidade desses sujeitos, fazendo-os rever suas atitudes e/ou posturas diante da vida, principalmente, em suas rotinas cotidianas.

Solidão do homem negro

Aceitar-se e ser aceito é um dilema comum e muito difícil de ser enfrentado pelo homem negro, oprimido pela cultura branca heteronormativa, que tende a desumanizá-lo. Talvez, por isso, a solidão do homem negro ainda seja um grande tabu em nossa sociedade. De maneira bastante oportuna e sutil, o tema foi abordado em Green Book: O Guia. A baixa-autoestima, o não-cuidado de si, o isolamento emocional, o medo das abordagens policiais, a auto-cobrança para ser melhor e não cometer erros, a dor de perceber que as pessoas o temem pela cor da sua pele, entre outras inúmeras vivências e sentimentos, traduzem de forma didática o problema no filme. Para aproximar ainda mais o espectador dessa questão, faz toda a diferença a interpretação assertiva de Mahershala Ali – que também trabalhou no premiado Moonlight, longa que também descortina o assunto.

(Des)construção cinematográfica

No fim, o resultado é um belíssimo longa que, para além da temática racial, desconstrói corajosamente seus personagens, na mesma medida em que tem potencial para desconstruir o espectador. O humor não é ultrajante. A técnica também não deixa a desejar. Trilha sonora, fotografia e montagem elevam o nível da produção, que merece ser vista e revista diversas vezes de tão emocionante e acolhedora, principalmente, em tempos de “liquidez” dos laços humanos, que costumam se perder com a rapidez, a fragilidade, a imprevisibilidade e a confusão do mundo contemporâneo.


Uma frase: – “Ser gênio não é suficiente, é preciso coragem para mudar o coração das pessoas”.

Uma cena: Quando o carro de Don Shirley e Tony Vallelonga esquenta demais e para, no meio de uma estrada, de onde se pode avistar muitos negros trabalhando numa fazenda.

Uma curiosidade: O tabuleiro de xadrez de Don Shirley não tem quadrados ou peças pretas.


Green Book: O Guia (Green Book)

Direção: Peter Farrelly
Roteiro:
Nick Vallelonga, Brian Hayes Currie e Peter Farrelly
Elenco: Viggo Mortensen, Mahershala Ali e Linda Cardellini
Gênero: Biografia, Comédia Drama
Ano: 2018
Duração: 130 minutos

Bianca Nascimento

Filha dos anos 80, a Não Traumatizada, Mãe de Plantas, Rainha de Memes, Rainha dos Gifs e dos Primeiros Funks Melody, Quebradora de Correntes da Internet, Senhora dos Sete Chopes, Khaleesi das Leituras Incompletas, a Primeira de Seu Nome.

3 comentários sobre “Crítica | Green Book: O Guia

  1. Assisti ontem a “Green Book: O Guia”. O filme faz rir, emociona, causa uma empatia enorme com a gente. Gostei da progressão da história e da dinâmica entre os dois personagens centrais. Entretanto, achei muito barulho por nada. Não sei se o que “Green Book” apresenta é o suficiente para ser considerado como o favorito para o Oscar de Melhor Filme. Dentro da filmografia de Peter Farrelly, com certeza, vai se destacar como um dos pontos altos da carreira dele, sem dúvida!

  2. O choque de personalidades e o humor extraído disso é muito bem explorado pelo diretor Peter Farrelly, que surpreende em seu 1º filme “sério” (mas nem tanto). Gostei também de como Green Book explora a cor verde, fazendo uma alusão ao título do longa.

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