Crítica | O Beijo no Asfalto

Crítica | O Beijo no Asfalto

O ator Murilo Benício estreia como diretor no filme O Beijo no Asfalto, onde ele adapta de maneira peculiar a peça de Nelson Rodrigues de mesmo nome. O mais fascinante dessa nova versão é perceber o quanto a obra de 1960 continua tão atual. E Benício foi muito inteligente e ambicioso com sua visão sobre a história, fazendo uma mistura de cinema com teatro e toques de bastidores da produção. Uma idéia interessante, mas que se não fosse bem executada poderia ser desastrosa.

A forma como Benício equilibra tipos diferentes de abordagens, com uma pegada de metalinguagem, transforma sua versão de O Beijo no Asfalto em um dos filmes mais interessantes de 2018. Inicialmente observamos os atores sentados em uma grande mesa enquanto discutem o roteiro e ensaiam algumas cenas. Essas cenas rendem comentários maravilhosos, principalmente vindos de Fernanda Montenegro – que fez parte da peça original. É fascinante também ouvir os comentários do diretor de teatro Amir Haddad fazendo interpretações sobre alguns trechos da obra de Rodrigues.

A grande sacada do filme é equilibrar essa troca de formatos de maneira fluída e que faça sentido para o espectador. Nessa linha, o trabalho da montagem é fundamental e funciona perfeitamente dentro da narrativa. Aos poucos a parte dos bastidores dá lugar ao “filme em si”, com os atores realizando suas performances nos cenários com seus respectivos figurinos. Um momento marcante que define bem essa transição é a cena na qual Arandir (Lázaro Ramos) chega em casa, senta no sofá e conta o que aconteceu para sua esposa e sua cunhada. Vemos o trilho da câmera e a imagem se aproxima lentamente do ator, então quando menos percebemos estamos “dentro do filme”.

Para completar, o filme foi filmado em preto-e-branco com a fotografia excelente de Walter Carvalho, que faz um ótimo trabalho com o uso das sombras e captação da luz, transformando as idéias de Benício em lindas imagens. O diretor também utiliza muito bem os closes nos rostos dos atores para obter mais emoção de suas atuações.

O elenco é incrível e reúne grandes atores, a começar pelo protagonista Lázaro Ramos. Todos eles mostram uma química muito boa entre si e entregam atuações carregadas de emoção, mas sem cair na “breguice” ou no melodrama, já que o teor da história dá margem a esse tipo de abordagem. O fato do diretor também ser ator sem dúvidas contribuiu bastante na direção do elenco, que conta ainda com nomes como Débora Falabella e Stenio Garcia.

 

A trama foi mantida nos anos 1960 e isso é observado pela direção de arte e pelo figurino. No entanto, nas cenas externas – que são poucas – é possível perceber que estamos nos dias atuais. Esse contraste é interessante por enfatizar de alguma forma o quanto a narrativa continua atual, apesar dos anos de diferença.

A história gira em torno do beijo no asfalto do título. Arandir estava na rua e presencia um homem ser atropelado, então ele o beija antes de morrer. O protagonista conta que apenas cedeu ao último desejo do desconhecido antes que falecesse. No entanto, um jornalista presente no momento escreve uma matéria para um jornal sobre o ocorrido e em sua versão, aquele não teria sido o 1º beijo. A partir dessa distorção a vida dele se torna um inferno, já que polícia se importa mais com o beijo – como se esse fosse o crime – do que o atropelamento em si.

Quem estaria falando a verdade: Arandir ou o jornal? Afinal de contas, se foi publicado no jornal não pode ser mentira. Em tempos de fake news e em que o conservadorismo está em alta, um beijo entre dois homens ainda é algo polêmico e que não é visto pela sociedade como algo aceitável de se presenciar na rua. Ou seja, a peça de Nelson Rodrigues, em pleno 2018, ainda faz sentido e continua atual. É justamente por isso que essa nova abordagem da obra por Murilo Benício é importante ao apresentar para um novo público uma obra importante do teatro brasileiro. O ator estreou muito bem como diretor e mostra muito talento para o cargo. Sua abordagem é brilhante em trazer o espectador para “dentro do filme”.

E quem diria que um simples beijo poderia gerar uma confusão tão grande…


Uma frase: – Aprígio: “Digamos que seu marido não seja exatamente quem você pensa.”

Uma cena: Quando Arandir chega em casa e conta o que aconteceu.

Uma curiosidade: Primeiro longa dirigido pelo ator Murilo Benício.


O Beijo no Asfalto

Direção: Murilo Benício
Roteiro:
Murilo Benício
Elenco: Lázaro Ramos, Débora Falabella, Stenio Garcia, Luiza Tiso, Augusto Madeira, Otávio Müller, Fernanda Montenegro, Amir Haddad, Marcelo Flores e Arlindo Lopes
Gênero: Drama, Crime, Romance
Ano: 2018
Duração: 98 minutos

Ramon Prates

Analista de sistemas nascido em Salvador (BA) em 1980, mas atualmente morando em Brasília (DF). Cinema é sem dúvidas o meu hobby favorito. Assisto a filmes desde pequeno influenciado principalmente por meus pais e meu avô materno. Em seguida vem a música, principalmente rock e pop.

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