Crítica | O Doutrinador

Crítica | O Doutrinador

O Doutrinador, baseado na HQ de Luciano Cunha, tinha uma premissa com um enorme potencial. Um anti-herói brasileiro com sede de vingança contra os políticos do país envolvidos com corrupção. Infelizmente o filme de Gustavo Bonafé acerta apenas em sua parte técnica, mas apresenta uma história totalmente superficial e clichê, se transformando apenas em um “herói” genérico nacional.

O filme ainda estreia em um momento delicado do país, logo após o resultado da eleição para presidente onde tivemos Jair Bolsonaro como vencedor. O Brasil está dividido e rodeado pelo discurso de ódio do futuro líder da nação, onde muitos dos seus eleitores – e o próprio Bolsonaro – definiriam o “inimigo” como sendo o partido PT e afins. Nesse cenário surge um “herói” cuja solução para o problema da corrupção é matar os políticos corruptos. Como não confundir e piorar ainda mais o debate político em torno dos problemas brasileiros?

Tudo bem, estamos diante apenas de uma obra de ficção. É importante separar a realidade da fantasia. O problema é que a história de O Doutrinador não funciona nem mesmo se o espectador conseguir fazer essa distinção. A trama gira em torno de uma vingança pessoal, no entanto o roteiro não consegue transformar essa narrativa em algo interessante e verossímil.

Miguel é um agente federal da “D.A.E.” (“Divisão Armada Especial”), que está investigando um governador acusado de desviar dinheiro destinado para a saúde. Um dia ele está levando sua filha pequena para um jogo de futebol, quando a garota leva um tiro, aparentemente uma bala perdida. Ele a leva para um hospital público, mas a jovem não é atendida e morre. O homem então conclui que a culpa da morte é dos políticos corruptos e resolve ir atrás de vingança.

A conclusão e motivação da vingança é tão absurda, que não é possível abstrair a história e entrar apenas no modo “entretenimento”. Os simbolismos do filme são bem claros. Um bom exemplo é a filha ser morta usando a camisa da seleção brasileira, que vemos com uma mancha de sangue. É claro o objetivo dos realizadores de pegar esse sentimento de raiva “contra tudo que está aí” para justificar as atitudes do protagonista.

O cinema já apresentou diversas tramas sobre revanche e mesmo não concordando com as atitudes do personagem, o espectador consegue entender as motivações que levam a pessoa a cometer aqueles atos. Não é o que acontece em O Doutrinador.

Além disso, o cinema brasileiro já apresentou obras de qualidade que mostram um tema parecido sobre o combate a corrupção dos políticos nos filmes Tropa de Elite 1 e 2. Neles a narrativa explora bem como o “sistema” funciona e dá motivações para as atitudes do protagonista, além de apresentar ótimas cenas de ação.

Se a história não funciona, o protagonista interpretado por Kiko Pissolato também não ajuda. O ator tem o porte físico para o personagem, mas não tem carisma para trazer o público para o seu lado. O elenco tem algumas participações interessantes, como Natália Lage e Eduardo Moscovis, mas infelizmente elas são pequenas. Moscovis faz um retrato interessante de um político corrupto e cínico. Já Lage faz a ex-mulher de Miguel, sendo responsável por dar alguma humanidade ao rapaz.

Contudo, apesar do problema na história, o filme de Gustavo Bonafé é muito competente em sua parte técnica. A trilha sonora de Instituto apresenta temas interessantes, utilizando elementos de rock com guitarras pesadas e distorcidas para compor a urgência e raiva do protagonista. A escolha das músicas da trilha também são boas, com nomes como Far From Alaska e Soundgarden. As cenas de ação também são bem executadas, com destaque para o momento na frente do Palácio do Governo durante um protesto. A fotografia também usa bem alguns clichês de filmes de herói, como ao mostrar o Doutrinador em cima de prédios à noite com as luzes da cidade ao fundo.

Já vimos diversos heróis que resolvem combater o crime por causa do assassinato de entes queridos, então nesse sentido O Doutrinador é apenas mais um. O personagem poderia ter como diferencial a realidade brasileira, simbolizada pelo combate à corrupção, mas a forma como sua história é construída é tão superficial e tola, que fica difícil levar sua vingança a sério.


Uma frase: – Nina: “Eu sou hacker, porra!”

Uma cena: O Doutrinador invadindo o Palácio do Governo.

Uma curiosidade: Trata-se da primeira adaptação de grande porte de HQs nacionais para as telonas.


O Doutrinador

Direção: Gustavo Bonafé
Roteiro:
Luciano Cunha, Gabriel Wainer, Rodrigo Lages, L.G. Bayão e Guilherme Siman
Elenco: Kiko Pissolato, Tainá Medina, Samuel de Assis, Nicolas Trevijano, Tuca Andrada, Marília Gabriela, Natallia Rodrigues, Natália Lage, Helena Ranaldi, Eucir de Souza, Lucy Ramos, Eduardo Moscovis e Helena Luz
Gênero: Ação, Crime, Drama
Ano: 2018
Duração: 115 minutos

Ramon Prates

Analista de sistemas nascido em Salvador (BA) em 1980, mas atualmente morando em Brasília (DF). Cinema é sem dúvidas o meu hobby favorito. Assisto a filmes desde pequeno influenciado principalmente por meus pais e meu avô materno. Em seguida vem a música, principalmente rock e pop.

Um comentário em “Crítica | O Doutrinador

  1. Ramon, como você bem disse, acho que a personagem central ecoa bastante com o que andamos vendo no Brasil atualmente. Eu não sabia que esse filme era brasileiro e eu não assistiria-o justamente pelas ressalvas que você aponta em sua crítica.

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