Crítica | As Herdeiras

Crítica | As Herdeiras

Chela e Chiquita, herdeiras de uma família rica no Paraguai, vivem confortavelmente há 30 anos. Porém, ao chegar na terceira idade, percebem que o dinheiro não é mais suficiente e começam a vender seus bens. Quando suas dívidas chegam ao ponto da Chiquita ser presa por cobranças fraudulentas, Chela começa a providenciar um serviço local de táxi para um grupo de senhoras ricas. Enquanto Chela se acostuma com a nova realidade, ela conhece a jovem Angy, e juntas embarcam em uma jornada de transformação pessoal.

As Herdeiras é um filme que atentou o meu olhar para alguns detalhes que parecem ser esquecidos ou ignorados por parte da sociedade: A sexualidade na terceira idade está relacionada à qualidade de vida. É fato que a quantidade de vezes que o ser humano tem relações sexuais tende a reduzir com o passar da idade e muitas dessas causas tem a ver com a qualidade da saúde e até mesmo estão ligadas à questão estética (a pele enruguece, fica flácida, o vigor físico já não é mais o mesmo). Mas a principal questão é que o idoso não se torna assexuado e muito menos perde a vontade de viver com o passar dos anos. Com isso em mente, a direção do filme consegue trazer um relato genuíno retratando a vida de Chela em casa, no carro com suas clientes, durante as visitas ao presídio e nas conversas que tem com Angy e sua serviçal.

SEXUALIDADE E QUALIDADE DE VIDA

Esse longa metragem faz uma abordagem certeira quando expõe a vida de um casal sexagenário sem fantasiar a vivência por um viés aventureiro (hollywoodiano). O que quero dizer é que diferente de um “Simplesmente Complicado” que traz personagens radiantes e cheios de sofisticação, beleza e luzes; As Herdeiras mostra a vida de uma maneira mais lenta, escura, crua e muito mais próxima da realidade dos seus avós ou pais sexagenários. O interesse pelo exterior é quase nulo, as perdas se fazem tão presentes quanto os remédios e não há muito o que possa ser feito além de encarar e viver.

Apesar de ter um ritmo lento nos minutos iniciais, os noventa minutos de filme são preenchidos com muita facilidade pela quantidade de bom conteúdo. É importante prestar atenção nas expressões de Chela ao longo da história, entender como ela se sente através do olhar para ter uma análise do todo (ainda mais se tratando de uma personagem que não vai ter com quem conversar sobre si o filme inteiro) e nem existem tantos diálogos que exponham sua maneira de pensar antes e depois de sua companheira ser presa.

O desejo é o elemento que dá sentido a vontade de viver, é o que move a personagem da condição incapacitante para tornar a ser uma mulher ativa e que avança em busca de novidade, encarando o medo e ajudando a repensar a vida. Ser idoso não torna o humano alguém um ágamo e muito menos inútil. A compreensão da sexualidade de Chela está totalmente ligada a sua qualidade de vida e a compreensão de si em interação com o outro, se manifestando nas relações sociais com suas “clientes” de táxi.  até conhecer Angy, uma mulher jovem e com o corpo delineado nas roupas, que mostra interesse nos pensamentos da solitária senhora e se torna uma das principais agentes de sua transformação.

CONDIÇÃO FEMININA, LGBTQI E FEMINISMO

As Herdeiras tem uma narrativa que prende ao que tem para ser apresentado e apresenta a condição feminina de forma muito cuidadosa. O filme é inteiramente composto por mulheres, salvo alguns homens que fazem parte da figuração e assim acaba fugindo de uma visão patriarcal em vários detalhes. Sim, o filme é feminista desde o princípio. Quando as mulheres se encontram para festejar um aniversário e todo o cenário é belamente preenchido por elas (nas mais variadas idades), é o estalo de que algo “incomum” está rolando. Além disso, o serviço de táxi feito por Chela é uma realidade em algumas cidades: Ela só transporta mulheres, principalmente idosas, o que surgiu da necessidade da vizinha que não queria usar o táxi comum.

Em um ano em que tivemos um blockbuster majoritariamente negro, um filme sul americano e feminino é de encher o pulmão pra respirar com esperança. Não é mesmo?

Vale ressaltar aqui a relação entre as senhoras ricas e suas empregadas negras. A discriminação racial se faz presente em alguns momentos e expõe uma prática que é herdada desde os tempos da escravidão. Apesar de pouco explorado, foi bem exposto. Além disso, as cenas feitas na prisão revelam algo muito brasileiro. mais uma vez, e que também é presente no Paraguai: A degradação da instituição que tem a função de reeducar se revela cada vez mais desumana. É chocante. Além do mais, o filme traz uma visibilidade para a questão LGBTQI que não tem leis favoráveis a gênero no Paraguai. 

SABE O QUE EU ACHO?

De fato, dizer que é hipnotizante, como é anunciado por alguma crítica durante o trailer, não é exagero de modo algum. Lembro que ao término do filme na cabine de imprensa, ouvi alguém reclamando com um ar de surpresa ao perceber o que havia ocorrido ali. A indagação espontânea revelou muito mais que uma curiosidade, enquanto que para mim foi o suficiente ter terminado daquela maneira. Ver alguém tomando o próprio rumo na vida sempre me traz uma sensação de liberdade e satisfação.

Se o argumento do filme não for o suficiente, se esforce pelo menos para assistir por conta das premiações… ou até mesmo pelo belo trabalho feito por Ana Brun, Margarita Irun e Marcelo Martinessi. Não acredito que vá concorrer ao Oscar como melhor filme estrangeiro, mas com certeza as atrizes merecem destaque.

 


 

Uma frase: “Então é só se aproximar, conversar ou pôr música para ela se acalmar”

Uma cena: A cena em que Chela se esconde no banheiro e depois sai para beber sozinha

Uma curiosidade:  O filme paraguaio tem co-produção brasileira e venceu o prêmio Alfred Bauer do Festival de Cinema de Berlim, dado à aqueles buscam abordar novas perspectivas no cinema.

 

 


As Herdeiras (Las Herederas)

Direção: Marcelo Martinessi
Roteiro: Marcelo Martinessi
Elenco:  Ana BrunMargarita IrunAna IvanovaNilda GonzalezMaría MartinsAlicia Guerra
Gênero: Drama
Ano: 2018
Duração: 90 minutos

 

 


 


 

Junio Queiroz

Sou bonito, sou gostoso, jogo bola e danço. Psicólogo humanista. As vezes edito algum podcast da casa.

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