Review | Star Trek: Discovery – 1ª Temporada

Review | Star Trek: Discovery – 1ª Temporada

A despeito das demandas e provocações decidi aguardar até o final da primeira temporada para escrever sobre o mais novo capítulo de uma das mais longevas franquias de ficção científica da história. O motivo era apenas um: o formato proposto para essa nova interação era inédito na franquia Star Trek.

Afinal, pela primeira vez uma série da franquia desenvolveria uma storyline ao longo de uma temporada inteira. A meu ver, isso exigia um cuidado adicional de primeiro observar a totalidade da coisa toda antes de falar com maior propriedade sobre ela.

Mais ainda, toda a produção dessa nova série fora envolvida em segredos e mudanças de última hora. Não se sabia ao certo, por exemplo, qual seria o posto da protagonista – pela primeira vez uma mulher negra, já honrando o importante papel social de representatividade que a série tradicionalmente buscou – Sonequa Martin-Green. O que se sabia apenas é que ela não seria a capitã.

Pela primeira vez, assim, teríamos uma série de Star Trek na qual o protagonista não seria o responsável por comandar a nave. Algo, mais ainda, bastante inusitado e que logo preocupou os já naturalmente, digamos, exigentes membros do conhecido fandom da série. E é em torno do fandom – como parece ser uma questão recorrente na cultura pop na era das redes sociais – que boa parte dos problemas de Star Trek: Discovery irão revolver.

É verdade que também se sabia que o storyline da temporada acompanharia a Guerra Klingon contra a Federação, episódio da história do universo criado por Gene Roddenberry que se situava cronologicamente cerca de 10 anos antes da série clássica estrelada por Leonard Nimoy e William Shatner. Mas isso se apresentava mais como um ponto problemático do que solução, principalmente considerando o já mencionado fandom que nunca costumou facilitar muito as coisas para produtores e roteiristas. Afinal, após a manobra de J.J. Abrams e Alex Kurtzman – que, por sinal, é um dos produtores de Discovery – em optar pela criação de uma linha de tempo alternativa que reintroduzisse a série para uma nova geração, com Chris Pine e Zachary Quinto, nos papéis que foram de Shatner e Nimoy um dia, uma das grandes preocupações do fandom seria até que ponto a série clássica seria respeitada em seu cânone.

Como era de se esperar, esse debate ocupou – ainda ocupa – todo o desenrolar da temporada, com problematizações inúmeras que, na maioria das vezes, carecem de bom senso ou sensibilidade narrativa e merecem ser ignoradas. Para mim, trata-se de uma questão menor, e não irei perder meu tempo aqui nessa discussão. Basta afirmar que, até onde pude perceber, Discovery é muito competente na sua fidelidade não apenas ao cânone da série clássica, como à de suas sucessoras, dialogando mesmo, de forma satisfatória, com Enterprise, que, apesar de ter sido a última série da franquia a ter espaço na TV, na linha de tempo do universo de Star Trek se localiza cerca de 100 anos antes. Mais ainda, e o mais importante, Discovery é extremamente fiel ao espírito e à essência de Star Trek, até um pouco mais, eu diria, do que Enterprise jamais foi capaz de ser. (E olha que eu adorava Star Trek: Enterprise, indo na contramão da maior parte do fandom).

Enfim, enquanto ainda há gente que perde tempo debatendo se Discovery é um genuíno produto de Star Trek ou não, creio ser mais interessante analisar a proposta da série em si, e sua posição dentro da franquia. E é isso que farei agora.

[button-red url=”#” target=”_self” position=””]Aviso de SPOILERS[/button-red]

Os comentários a seguir falam sobre acontecimentos narrados na primeira temporada de Star Trek: Discovery.

A Guerra Klingon

A opção dos produtores por abordar uma única storyline ao longo de toda uma temporada, a princípio, me pareceu uma opção acertada. Seria interessante ver uma trama se desenvolver com cuidado ao longo de diversos episódios, com uma continuidade narrativa que não é comum na estrutura de Star Trek que, tradicionalmente, é uma série conhecida – e que sempre se favoreceu muito – de seus formatos episódicos.

Porém, em determinado momento, fica nítido que os próprios produtores e roteiristas se sentem limitados por essa opção, o que resulta, em alguns episódios, num desgaste da trama. Ainda, não há um aprofundamento tão desejável quanto poderia ser possível. Em suma, nós saímos vendo menos do que gostaríamos sobre a sempre interessante cultura Klingon, e experimentando, apenas superficialmente, o desenrolar da guerra que quase leva à destruição da Federação. Isso é um pouco frustrante.

A sensação de frustração apenas não é completa pois, desde o início também, fica claro que, mais do que a história da nave Discovery – que dá nome à série – essa é a história de Michael Burham, a personagem de Sonequa Martin-Green. A atriz é muito competente em seu trabalho de composição e interpretação e tem uma personagem muito bem escrita que nos conquista desde o primeiro momento. O que estamos assistindo, assim, é o que aquela guerra significa para Burham, e tudo que esta levará ela a perder e a conquistar. A jornada, enfim, sobretudo, é dessa personagem. E, embora fosse possível se esperar algo mais bem trabalhado – ou até menos expositivo, ao final – não há dúvidas que se trata de um arco digno e bem trabalhado por toda a equipe.

Aliás, é na opção de colocar Burham como o eixo da história que reside também o principal triunfo de Discovery. À medida que temporada se desenrola, e as peças começam a se encaixar, a importância da personagem se evidencia também dentro da coerência narrativa que se torna cada vez mais interessante, explorando diversas possibilidades de um dos aspectos mais sedutores da franquia: o universo alternativo onde existe um reflexo distorcido da Federação dominando com mão de ferro a galáxia.

Através do espelho

Universos alternativos sempre são coisas legais pra quem é fã de ficção científica. E Star Trek – vou arriscar, aqui, pois não vou perder tempo pesquisando na internet – talvez tenha sido uma das primeiras séries a recorrer a esse conceito. Mais ainda, muitos dos tropes relacionados a universos paralelos foram estabelecidos por Star Trek. Lembre apenas do Cartman de cavanhaque em South Park, a da simbologia que um bom cavanhaque tem na cultura pop, e talvez isso que estou falando faça mais sentido. Mais ainda, lembre do motivo pelo qual Leonard Nimoy foi escalado para viver William Bell em Fringe, e talvez você entenda a verdadeira dimensão (com intenção do trocadilho) do que estou expondo aqui.

Voltar ao universo paralelo de Star Trek, assim, é algo todo trekker espera com antecipação e aprecia com prazer. A partir do ponto em que fica claro que a trama central da temporada não é a Guerra Klingon, mas uma disputa pelo poder no Império Terrano do universo paralelo que tem na Discovery e em Michael Burham elementos centrais, a série ganha um ritmo diferente e toda a recompensa preparada com a primeira metade da temporada é entregue de forma bastante empolgante. Vale dar crédito, nesse ponto, pela excelente performance de Michelle Yeoh que sabe, como poucos, chutar bundas com graça, estilo e beleza, do alto dos seus muito bem vividos 55 anos. Sem ela talvez todo o arco do universo paralelo talvez não funcionasse tão bem.

O problema é que, enquanto a trama envolvendo o Império Terrano se encerra muito bem pouco antes do fim da temporada, o mesmo não se dá com a trama da Guerra Klingon. Fica nítido que esta última foi introduzida como um grande Red Herring que servia apenas para distrair a audiência da trama mais importante. Porém, quando isso se dá, além de se frustrar expectativas previamente estabelecidas, a série sacrifica um melhor aproveitamento de dramas muito interessantes de personagens que mereciam mais. Isso se dá, de forma mais evidente, com Voq/Ash Tyler – interpretado de forma um tanto quanto repetitiva por Shazad Latiff – que acaba tendo um bom arco de personagem resolvido de maneira descuidada e superficial, reduzindo-o a um mero interesse romântico da protagonista e totalmente deslocado da trama principal.

Esse problema no tratamento da trama da Guerra Klingon se reflete bem no último episódio. A resolução de todo um conflito de tamanha magnitude que cobra custos tão altos a ambos os lados é proposta de forma um tanto quanto preguiçosa e até pouco convincente, ao ponto de incomodar um pouco. Isso não chega, porém, a comprometer toda a temporada que, no fim das contas, se encerra em saldo positivo. Fica, enfim, a mensagem da Federação – ainda que escrita com tintas carregadas de retórica – que é tão importante para o mundo atual e que faz dessa nova iteração de Star Trek algo ainda mais relevante, tanto quanto foram suas predecessoras.

Só nos resta esperar que a segunda temporada opte por não ficar presa à uma única storyline e, se assim o fizer, que encontre espaço entrementes para o caráter episódico que sempre permitiu à Star Trek melhor explorar as questões morais, sociais, políticas e filosóficas pelas quais a série se tornou tão conhecida e, conforme mencionado, relevantes.

Star Trek: Discovery, afinal, apesar dos problemas aqui apontados, é uma série de ficção científica da melhor categoria, produzida com uma qualidade que fica acima da média da série na TV e de aproxima – e até supera, em alguns casos – qualidade do cinema. Para fãs da série, é sem dúvida obrigatória. E para qualquer amante de um bom entretenimento sci-fi, uma experiência que pode ser mais do que satisfatória.

Que venha a segunda temporada.

Vida longa, e próspera.

*Esse texto é dedicado a nosso querido amigo Luís Augusto, trekker de longa data, e talentoso artista criador da série em quadrinhos “Fala Menino”, que nos deixou prematuramente em busca de seu lugar nas estrelas. Uma pessoa que sempre se notabilizou pelo seu profundo senso de humanidade, personificando, como poucos, os princípios que inspiram a Federação dos Planetas Unidos e os ideais que formam a espinha dorsal de Star Trek.

Mário Bastos

Quadrinista e escritor frustrado (como vocês bem sabem esses são os "melhores" críticos). Amante de histórias de ficção histórica, ficção científica e fantasia, gostaria de escrever como Neil Gaiman, Grant Morrison, Bernard Cornwell ou Alan Moore, mas tudo que consegue fazer mesmo é mestrar RPG para seus amigos nerds há mais de vinte anos. Nas horas vagas é filósofo e professor.

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