mãe! e a crítica ao patriarcado

mãe! e a crítica ao patriarcado

O filme de Darren Aronofsky — que também dirigiu Noé (2015) e Cisne Negro (2012) — pode ser interpretado de várias formas, exceto de maneira literal. A história que se vê na tela, com Javier Bardem e Jennifer Lawrence como protagonistas, impõe ao espectador uma ou diversas reflexões após as duas horas de cenas incômodas e, por vezes, angustiantes. Depois que sobem os créditos, a cabeça começa a ferver em teorias e possíveis explicações, uma delas é a de que o filme faz um crítica à sociedade patriarcal. Vá ao cinema acompanhado, porque você sentirá a necessidade de compartilhar o que sentiu e conversar sobre o que viu.

[button-red url=”#” target=”_self” position=””]Aviso de SPOILERS[/button-red]

Os comentários a seguir falam sobre acontecimentos encontrados no filme “mãe!“. A partir daqui, necessariamente, vai ter spoiler. Não estrague sua experiência. Porém, se ainda assim quiser continuar a leitura, o faça por sua conta e risco

Quem entende um pouco de Cristianismo fará uma associação direta do personagem de Bardem a Deus, antes do final do filme. Para todas as outras pessoas, isso só será confirmado nos créditos, quando o personagem é de fato apresentado oficialmente ao público como Him (Ele) e Lawrence é apenas mother (mãe), assim mesmo, como eme minúsculo. E aí, na sequência, confirmamos que o primeiro casal a chegar a casa para se hospedar é Man (Homem), interpretado por Ed Harris, e Woman (Mulher), papel de Michelle Pfeiffer. Ou seja, Adão e Eva, pelo conceito bíblico.

No filme, Ele (Deus) é um poeta com bloqueio criativo. A mãe é sua esposa, jovem e bonita, que está reconstruindo cômodo por cômodo a casa onde eles moram, no meio do nada, após um incêndio. Ele a trata, em diversos momentos do filme, como sua musa inspiradora. O relacionamento dos dois está abalado pela dificuldade dEle em escrever sua nova poesia. A solidão dela é visível por suas expressões faciais, ao mesmo tempo em que tenta aparentar normalidade e compreensão. Quando o Homem chega, o desconforto aumenta. A situação piora com a chegada da Mulher e, em seguida, de seus dois filhos – irmão mais novo e irmão mais velho, que são representações de Caim e Abel.

Do segundo para o terceiro ato do filme, as referências bíblicas ficam mais evidentes. Não são gratuitas, pelo contrário. Darren Aronofsky quer que vejamos e confrotamos a vaidade de Deus – figura masculina, a quem se atribui a criação da Humanidade como a conhecemos. Em contrapartida, o diretor coloca a mãe como representação da casa, do planeta Terra, da natureza. Durante quase todo o filme, somos guiados pela perspectiva dela. Câmeras e trilha sonora sufocantes, na maior parte do tempo, ajudam na imersão do espectador em seu sofrimento.

Quem se entregar a partir daí, vai conseguir apreender a crítica mais forte presente nessa obra cinematográfica, que diz respeito exatamente à opressão cotidiana das mulheres como condição para sobrevivência num mundo idealizado por homens. A mulher — assim como a natureza e o planeta — é constantemente ignorada, violentada e explorada por uma sociedade patriarcal, individualista e consumista. O Cristianismo, inclusive, é uma das muitas religiões usadas para justificar esse modelo nos países do Ocidente, ao colocar a mulher num lugar de submissão, servidão, destinada a obedecer e a procriar. É, acima de tudo, considerada a responsável por todos os pecados dos homens.

Várias cenas pontuam a indiferença dEle com relação à mãe. Ele não a ouve e não a consulta sobre decisões a serem tomadas sobre a casa. Também não participa da divisão de tarefas do lar. O poeta está tão envolvido com sua nova obra que abandona a esposa para alimentar sua vaidade, permitindo a invasão da casa por desconhecidos que o idolatram, às vésperas do nascimento do próprio filho. Aliás, o trabalho de parto da mãe — que acontece em meio a uma sucessão de acontecimentos desconfortáveis e perigosos — é uma das cenas mais tensas do filme e pode ser comparada à experiência de violência obstetrícia tão comumente praticada e aceita em nossa sociedade.

Com o nascimento do filho dO Criador, a mãe está acuada, amendontrada e desconfiada do marido. Ela tenta proteger a criança, mas ao pegar no sono, o personagem de Bardem toma o bebê e o entrega à multidão de seus “seguidores”. Nesse momento, é preciso ter estômago porque as cenas que se seguem são fortes. Assim como na passagem bíblica, o filho desse Deus é entregue ao sacrifício. A mãe (mulher e natureza), inconsolável, se revolta contra os invasores da casa e assassinos de seu filho. Quase ao mesmo tempo, a multidão a espanca, arranca suas roupas, sob gritos, xingamentos e julgamentos tão comuns no cotidiano das mulheres. Lembra Maria Madalena.

O que acontece a partir daí é o apocalipse, literalmente. A mãe se revolta contra Ele e resolve destruir a si mesma e tudo a sua volta, ao incendiar a casa. O fogo a consome, mas ela só morre quando o marido toma para si o cristal que está dentro do seu coração. Nesse ponto, é possível traçar um paralelo com o desgaste emocional/psíquico a que são submetidas mulheres que passam por relacionamentos abusivos e violência doméstica. Tudo para, no fim, Deus recomeçar com uma nova mulher a sua busca pela perfeição criativa.

Eva

Michelle Pfeiffer é a versão contemporânea da mulher descrita pela Bíblia como desobediente, impulsiva e sedutora. Todos os acontecimentos ruins com a casa e com a mãe do filme são consequência direta de uma ação provocada pela representação de Eva. Trata-se de um exemplo típico de um dos principais estereótipos atribuídos à mulher na sociedade machista: a de culpada pela falência dos relacionamentos e também da mau criação dos filhos. Nas cenas da personagem com Lawrence, o diretor parecer fazer questão de explorar um pouco da crença de que mulheres são competitivas e invejosas umas com as outras.

Musa

Vale destacar que a personagem de Lawrence é incansavelmente retratada como a musa inspiradora para o marido poeta, por sua beleza, amor servil e juventude. Com relação a isso, a crítica do filme avança sobre uma questão bastante recorrente acerca do lugar delegado às mulheres no meio artístico, constantemente colocadas como objetos decorativos de cena, sem protagonismo, para interpretar personagens construídas a partir de estereótipos sexuais. À mãe do filme cabe servir o Ele de Bardem com sua beleza e sedução, a fim de inspirá-lo para a sua criação, e nada mais.

Opinião

A produção acerta em levantar a discussão sobre a desigualdade de gênero ao mesmo tempo em que faz uma crítica central ao Cristianismo. Observando atentamente, o filme também mira nos problemas da exploração desenfreada dos recursos da natureza, que poderá, num futuro próximo, tornar a existência humana insustentável. As atuações são impecáveis. A trilha sonora, com suas minúcias, é muito melhor explorada pelo espectador no cinema. Fotografia, jogos de cena, enquadramentos e montagem são extremamente criativos.

Bianca Nascimento

Filha dos anos 80, a Não Traumatizada, Mãe de Plantas, Rainha de Memes, Rainha dos Gifs e dos Primeiros Funks Melody, Quebradora de Correntes da Internet, Senhora dos Sete Chopes, Khaleesi das Leituras Incompletas, a Primeira de Seu Nome.

2 comentários sobre “mãe! e a crítica ao patriarcado

  1. Discordo um pouco de sua visão, entretanto concordo com você num ponto: é evidente no filme a visão machista, uma vez que, como você bem observa, a opinião da personagem de Jennifer Lawrence nunca é levada em consideração pelo marido, que não a consulta em nenhuma decisão que toma. Além disso, a personagem dela é quase que uma prisioneira da casa, nunca saindo daquele ambiente, vivendo sempre confinada e totalmente dedicada e devotada à casa e ao marido. É uma visão um tanto ultrapassada, mas que entra no contexto da obra, dependendo da interpretação que você dá à trama.

  2. Dentre as mil leituras permitidas nesse filme, foi impossível não perceber esta! A figura masculina de Deus que carrega o coração, amor, da mulher como um troféu. Os xingamentos dados a ela quando espancada minutos antes de atear fogo na casa – todos relacionados a opressão feminina. A força que emana dela quando mãe. Atrevo-me a dizer também a relação com Maria (bíblica), quase que um evangelho segundo Maria, diferente daquele pregado pelo cristianismo. Esse filme é maravilhoso!

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