Descascando as Desventuras em Série: É melhor não ler!

Descascando as Desventuras em Série: É melhor não ler!

Uma das mais interessantes qualidades de um escritor é a capacidade de escrever em camadas. Quando uma obra é feita dessa maneira ela consegue atingir uma variedade incrível de público, encantando tanto as pessoas que buscam apenas se entreter, quanto as pessoas que buscam uma experiência estética mais profunda. Desventuras em Série, é um bom exemplo de um produto com essa característica.

Quando Lemony Snicket (pseudônimo de Daniel Handler) escreveu a série de livros (que mais tarde inspirou o filme e agora é representada na série televisiva da Netflix) criou um produto de entretenimento de sucesso, sobretudo com o público infanto-juvenil, ao mesmo tempo que construiu uma intricada narrativa com alusões a vários escritores e livros. Se você sacou alguma dessas referências, ou não sacou, mas ficou curioso agora, segue lendo aí que vamos descascar algumas dessas camadas. Quer dizer…não…é melhor não olhar!

Antes de mais nada, cabe dizer que será analisada aqui a primeira temporada da série televisiva sem a pretensão de oferecer uma nota, uma apresentação ou coisa que as valha. A pretensão aqui é seguir o caminho dado pelas referências usadas pelo escritor para refletir um pouco sobre o seriado. Logo na primeira temporada há uma quantidade infindável de referências, não seria possível analisar todas. Sendo assim vamos focar basicamente na referência que, ao meu ver, é a principal.

Baudelaire é o sobrenome das crianças protagonistas, mas também é o sobrenome de um importante poeta francês do século XIX, Charles Baudelaire. Toda sua obra é marcada pelo clima sombrio comumente trabalhando temas como morte, sofrimento, tédio, dentre outras coisas do gênero. Ao que tudo indica o sobrenome escolhido para os personagens principais é uma referência ao poeta maldito (Baudelaire também teve sua herança bloqueada até atingir a maioridade). Como avisado pelo narrador constantemente ao longo da história, a aventura das crianças não é uma história comum com um final feliz. A trajetória dos Baudelaires é uma espiral de dor e sofrimento que parece só piorar a cada episódio. A angústia pelos revezes sofridos pelos personagens só é diminuída pela ironia do narrador em sua repetição sobre como a vida das crianças é desgraçada.

A série de livros, o filme e agora o seriado alcançam muito o público infanto-juvenil (afinal é uma obra infanto-juvenil) porque os jovens se identificam com a aflição dos personagens. Assistir a dor do outro diminui, de alguma maneira, o sofrimento de quem assiste, isso não é nenhuma novidade na dramaturgia, é explorado desde as peças trágicas gregas. As tragédias gregas, aliás, possuem semelhanças com a nossa história que iremos revelar adiante.

As Desventuras em Série possuem uma importante diferença da grande maioria das outras obras infanto-juvenis e da maioria das obras da cultura pop em geral, o final não feliz. O sofrimento é usado para aproximar o espectador do personagem. É importante ver Harry Potter sendo maltratado pelos parentes, depois sofrendo para se adaptar na escola. Além de aproximar o personagem ao público (afinal, todos sofrem de uma forma ou de outra), isso também valoriza a grande vitória final do bem (encarnado no personagem principal) contra o mal.

O diferencial da nossa história é que nela não há final feliz (assim como nas tragédias gregas), não existe uma recompensa pelo sofrimento. Mas, quem quer ver uma história que não tem final feliz? Bom…acredito que muitos que estão acompanhando a série estejam esperando que as crianças encontrem os pais e voltem a viver com sua fortuna no paraíso prometido, porém eu trago más novas, deixai a esperança, isso não vai acontecer (eu tinha avisado para não ler). Não, eu não tenho bola de cristal e nem conheço os produtores da série, mas se houver um final feliz, isso vai desvirtuar completamente a ideia do projeto (sim, eu tenho fé que o autor não cederia sua obra para ser modificada de tal maneira).

Dessa forma, a pergunta continua: quem quer assistir uma história sem final feliz? Se teve saco o suficiente para chegar até aqui (e ignorou os avisos), me acompanhe mais um pouco para entender porque é extremamente importante que não exista um final feliz. Voltemos à Baudelaire por um instante, o poeta. Uma de suas características é a crítica ao processo sofrimento-redenção, isto é, ao caminho que leva a superação das dores para a recompensa das desgraças sofridas, o fim da tempestade (Lembrem-se que a metáfora do fim da tempestade no episódio lago das sanguessugas. O que existe depois da tempestade não é um prêmio pelo sofrimento, é o tédio, é ficar à deriva).

O que há de interessante na nossa história é justamente a desesperança. Somos tentados a pensar que a esperança e o otimismo são coisas boas. Porém, talvez essas coisas não sejam tão interessantes quanto parecem. A esperança era considerada um dos grandes males que habitavam a caixa de Pandora. Nos conta a mitologia que a esperança foi o único mal a permanecer na caixa depois de aberta, por isso ela é a última a morrer. A esperança é um mal porque ela enfraquece a potência de fazer algo, é esperar sofrendo no presente ansiando uma recompensa no futuro, é escolher viver num futuro que não oferece a menor garantia que irá se realizar.

Da mesma forma, o otimismo sempre considerado uma qualidade, pode não ser uma coisa interessante. Recordemo-nos do aviso do pai das crianças no penúltimo episódio da primeira temporada: não confiem em otimista e nem em optometristas. O otimista é passivo, controlado, conformista, como um trabalhador da serraria alto-astral. Da mesma forma que o esperançoso, o otimista não encara a realidade que vive, engana a si mesmo procurando motivos para justificar sua falta de coragem para mudar sua realidade. As nossas crianças, por outro lado, se mostram verdadeiras heroínas pelo seu não conformismo e por encarar seu sofrimento sem lamento. Aí está, uma lição extremamente importante que não se vê em qualquer obra de entretenimento.

Os problemas não irão parar de surgir, as desventuras são algo comum na vida de qualquer pessoa, a questão é: como lidar com isso? Esperando salvação? Tentando enxergar o lado bom das coisas? Talvez as crianças Baudelaires possam nos ensinar algo sobre isso.

Cristian Arão

Assiste uns filmes e umas séries, lê uns livros e uns quadrinhos e gosta de conversar e escrever sobre essas coisas. Tirado a filósofo, tem mania de fazer interpretação filosófica de quase tudo. Anarquista e usuário de marxismo, possui especial apreço pelas distopias e pira nas narrativas sobre crítica social. Excepcionalmente nesta descrição refere-se a si mesmo na terceira pessoa.

3 comentários sobre “Descascando as Desventuras em Série: É melhor não ler!

  1. Confesso que a série na Netflix sempre me chama mas eu nunca consigo iniciar. Seu texto está excelente, nunca tive coragem de ler os livros, vi apenas o filme que passou nos cinemas e confesso que me agradou a “premissa”.

    Essa trama de “desventuras” por mais que pareça ser extremamente desesperançosa, o contrário do que muitos procuram, me desperta interesse. Vou dar uma chance.

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