Crítica | Daytripper

Crítica | Daytripper

Por mais que a tal campanha do “sou brasileiro e não desisto nunca” tenha virado bordão, a verdade é que, por essas bandas, nós ainda sofremos muito com a “síndrome do vira-lata tupiniquim”: temos mania de não valorizar o que é nosso e de diminuir os feitos realizados por conterrâneos, não importando o quão grandiosos eles sejam.

Quem capturou bem esse vira-latismo foi o falecido cartunista Henfil, que durante a Copa de 70 publicou na Revista Placar uma tirinha na qual o protagonista cornetava impiedosamente aquela que até hoje é considerada uma das maiores seleções de todos os tempos.

Ao final da Copa, mesmo tendo o time canarinho se sagrado vencedor com sobras, o inconformado corneteiro ainda conseguiu arrumar uma forma de criticar e diminuir a conquista, recriminando o capitão do time no momento da premiação: “SEGURA ESSA TAÇA DIREITO, CARLOS ALBERTO MOLOIDE!”

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A corneta não perdoa

“Ai meu Deus, eu clico aqui para ler sobre quadrinhos e você me vem com futebol?”, questiona o angustiado leitor. “Ô Márcio Melo, toma uma providência. Quem contratou esse sujeito para a POCILGA?”

Calma, tenha paciência que eu já chego lá.

Onde é que eu estava mesmo? Ah, sim, complexo de vira-lata.

Daytripper-CópiaÉ por essas e outras que hoje eu compreendo quando meu saudoso professor de História do ensino médio contava que a Orquestra de Berlim apontou Luiz Gonzaga como um gênio da música, ou que Frank Sinatra considerava Nelson Gonçalves a melhor voz do mundo – e ameaçava dar zero para os alunos que não acreditavam nele.

O que o meu mestre estava tentando fazer era, desde cedo, incutir na cabeça dos seus alunos um orgulho pelos feitos dos seus conterrâneos; mostrar que nós brasileiros podemos, sim, criar obras de arte respeitadas e prestigiadas internacionalmente.

Toda essa (extensa, eu sei) introdução foi só para mostrar o quanto eu lamento que dois GÊNIOS como Gabriel Bá e Fábio Moon, autores dessa obra-prima chamada Daytripper, não sejam muito conhecidos no Brasil – embora lá fora eles sejam respeitados e laureados, já tendo inclusive levado o prêmio Eisner duas vezes.

Isso mesmo: apesar de ter nome de música dos Beatles e de ter saído primeiro no exterior e só depois traduzida para o português, Daytripper é tão brasileira quanto um mico-leão dourado tocando pandeiro e bebendo cachaça.

Notem que por “brasileira” eu não quero dizer apenas “escrita por brasileiros”. Daytripper se passa no Brasil, seus personagens são brasileiros e o nome do protagonista é uma clara referência a uma das mais clássicas obras de Machado de Assis.

Mesmo assim, é uma obra que transcende as fronteiras tupiniquins e alcança leitores de todas as nacionalidades, ao tratar de temas universais como paternidade, relacionamentos, amor, amizade, família e sonhos.

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Se quer ser universal, começa por pintar a sua aldeia

 

Daytripper é sobre a morte — ou melhor, sobre as mortes de Brás de Oliva Domingos — mas por meio dessas mortes nós aprendemos mais sobre a vida e sobre o quão efêmera ela pode ser.

Em nosso primeiro contato com o protagonista, vemos um homem frustrado, vivendo à sombra do pai e preso em um trabalho que não lhe estimula nem realiza: ele sonha em ser escritor, mas é apenas o responsável pela coluna de obituários de um jornal na cidade de São Paulo.

A partir daí, passamos a acompanhar, de forma não linear, várias etapas de sua vida. Vemos Brás como pai, como filho, como amigo e como esposo, em capítulos que sempre terminam com a sua morte — mas nos dizem muito sobre aqueles pequenos instantes dos quais a vida se constitui.

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It took me so long to find out… And I found out

Sim, todos os capítulos terminam com o passamento do protagonista, como um lembrete de que nossa presença neste mundo pode acabar a qualquer instante – até mesmo nos momentos mais importantes, como o nascimento do seu filho ou a realização de um sonho.

Através desses pequenos vislumbres, nós montamos aos poucos o quebra-cabeça da existência de Brás: vamos conhecendo-o melhor por meio das suas amizades, namoros, sonhos, casamento e do seu relacionamento com seu pai, sempre com desenhos magistrais da dupla Bá & Moon.

Daytripper nos leva a refletir sobre esses pequenos eventos; sobre as realizações nas nossas vidas e o que deixamos para trás quando o inevitável ocorre. É uma reflexão brilhante, uma obra literária carregada de emoção que entra facilmente para o rol do que de melhor a nona arte tem a oferecer — mas cujos autores infelizmente não têm o devido reconhecimento em sua terra natal.

Não é exagero. Essa espetacular graphic novel de Gabriel Bá e Fábio Moon nada deve a algumas grandes obras da literatura nacional e, ouso afirmar, merece ser colocada junto ao panteão dos grandes livros brasileiros.

E eu dou zero para quem não acreditar em mim.

O cabra pode ser valente e chorar

daytripper-capaDaytripper
Autor e Arte: Fábio Moon e Gabriel Bá
Editora: Panini Livros
Número de páginas: 256

Lionel Leal

Canto como Lionel Messi, jogo bola como Lionel Richie.

3 comentários sobre “Crítica | Daytripper

  1. Esse complexo de vira-lata é complicado mesmo. Essa HQ já despertou a minha curiosidade em ler, mas eu to com tanta coisa acumulada para ler que nem cogitei colocar na lista. Mas depois desse texto irei reconsiderar. Deles eu só li The Umbrella Academy.

    1. Man, essa HQ é imperdível, acho que poucas obras conseguem falar tanto sobre a vida como Daytripper.

      É bem o que Lionel falou, o cabra pode ser valente e chorar

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