Crítica | Sicário: Terra de Ninguém (Sicario)

Crítica | Sicário: Terra de Ninguém (Sicario)

No estado de natureza, apenas os lobos reinam.

O novo filme do diretor Dennis Villeneuve desde a abertura deixa claro que não está narrando uma simples história sobre o mundo das drogas. Sicário, como ele anuncia, não é apenas o termo usado pelos narcotraficantes na América Latina para se referir a seus assassinos de elite. Na Palestina ocupada pelo Império Romano na antiguidade, Sícarios eram os soldados de elite dos Zelotas – um grupo radical de guerreiros que lutava pela liberdade dos palestinos – especializados em matar os soldados invasores romanos.

Isso é suficiente para preparar a audiência mais atenta à guerra que virá a seguir. Não uma guerra de frentes abertas, mas uma guerra que se luta nas sombras. Silenciosa, porém, não menos sangrenta. E uma luta que envolve muito mais do que poder ou dinheiro. Envolve os próprios valores fundamentais nos quais se encontram emaranhados homem, civilização e natureza.

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Uma mulher de bem

Sicário começa nos levando a crer que acompanharemos a história de Kate Macer (Emily Blunt), agente do FBI em início de carreira que ao se deparar com a extensão da brutalidade das ações dos cartéis de drogas da violentíssima Juarez, no México, acaba se envolvendo, por uma sincera motivação moral, com uma nebulosa força-tarefa anti-drogas do governo estadunidense.

A força-tarefa é composta por diversas agências e conta inclusive com militares veteranos do Afeganistão mas é liderada pelo sempre informal, sorridente e misterioso Matt Graver (Josh Brolin), que em momento algum anuncia sua posição oficial, mas que responde diretamente ao Departamento de Justiça dos EUA. Logo Macer conhece também o último, e mais circunspecto, membro da força-tarefa, que curiosamente é também o único que não é estadunidense, e que se apresenta simplesmente como um ex-promotor que atua como consultor e é chamado por Garver apenas de Alejandro (Benicio Del Toro). E é esse último personagem o verdadeiro fio condutor que conduz a história visceral narrada com maestria pelo diretor Denis Villeneuve.

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Virtuoso Villeneuve

O ritmo intenso da guerra é mostrado com maestria logo na primeira grande sequência do filme, na fronteira entre os EUA e O México, em uma cena que em nada deixa a desejar a um O Resgate do Soldado Ryan ou Guerra ao Terror. A fantástica trilha sonora trabalha em perfeita sintonia com a câmera firme e muito bem enquadrada de Villeneuve, e com uma edição fluida de dinâmica que conseguem mostrar uma situação que nos provoca uma progressiva e aparentemente incessante sensação de espanto e tensão, sensação esta que de tão intensa parece permanecer ao longo de todo o filme. Enfim, uma verdadeira aula de cinema.

Espantoso mesmo é como a partir de um roteiro simplório, Villeneuve comprova o motivo de já ser considerado uma das grandes revelações da indústria dos últimos anos. Ser um bom diretor é acima de tudo saber contar bem uma história. Os diretores competentes sabem usar a técnica e a linguagem do cinema para contar as mais simples histórias de forma a entreter a audiência. Os verdadeiramente geniais fazem o mesmo destacando através dos mais diversos artifícios a mensagem que querem passar, transformando enfim entretenimento em arte.

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Sicário, nas mãos de outro diretor, poderia ser apenas mais uma história de vingança em meio à guerra as drogas. Mas Villeneuve não deixa de mostrar – a exemplo de Narcos – que essa guerra às drogas envolve também elementos sociais, econômicos e políticos, e que a violência é muito mais um resultado do meio. E a medida que a guerra se intensifica, e suas verdadeiras causas não são combatidas, a violência apenas escalona e somos convencidos que a única solução possível é abrir mão de toda e qualquer humanidade e dos fundamentos do estado de direitos para que se tenha a mínima sensação de segurança. Um traço em comum, a propósito, com Ponte dos Espiões que também estreia nessa semana.

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O lobo do lobo

Não por acaso essa é a uma das bases da teoria de Hobbes no Leviatã[i]. Hobbes afirma que no estado de natureza, num estado de guerra, o maior predador do homem é o próprio homem. O homem é o lobo do homem, afirma a famosa máxima cunhada pelo filósofo. O que não nos damos conta, todavia, é que esse estado de natureza é gerado no seio da própria comunidade política quando nos deixamos enganar que a garantia da segurança justifica o prejuízo de quaisquer direitos. Criamos, enfim, ou permitimos a criação, do campo de caça no qual o lobo correrá livre.

Villeneuve tem essa imagem marcada de maneira bastante clara e definida em sua mente e mostra isso com a bela e contundente arte de sua câmera. Seja na forma como construímos uma cerca para separar dois mundos, daqueles que tem menos, dos daqueles que tem mais, criamos inimigos onde antes não havia ou no desenho árido dos desertos da fronteira entre os EUA e o México que lembra uma colcha de retalhos feita de pedaços de tecido humano duramente cicatrizado, mas ainda assim disforme. Tudo isso marcado pela já citada excelente e compassada trilha sonora de Jóhann Jóhannsson que ajuda a construir um clima de tensão que começa bastante intenso e vai se diluindo aos poucos ao longo da fita.

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Assim vemos, a medida que a história se desenrola, o estado de direitos – simbolizado na pessoa de Kate Macer – ser constantemente desrespeitado, tratado com condescendência, agredido e simplesmente ignorado sem o menor pudor. Para os lobos que se banqueteiam no estado de natureza, Kate Macer é apenas um detalhe, um acessório para criar a aparência de legalidade. Ao lado dela, o mais silencioso e mortal dos lobos, aquele que foi ferido, apenas a observa como se contemplasse uma lembrança distante. Mas ela não é sua presa. Kate é daquelas pessoas que não sabem ser um lobo. No mundo dos lobos é preciso se tornar um lobo para se conseguir algum tipo de justiça; ou melhor, algum tipo de vingança, que é tudo que pode existir entre os lobos que abandonam o estado de direitos e espreitam nos campos sangrentos do estado de natureza.



Título Original: Sicario
Título Nacional: Sicário: Terra de Ninguém
Gênero: Ação/Drama/Crime
Ano: 2015
Duração: 121 min
Diretor: Dennis Villeneuve
Roteiro: Taylor Sheridan
Elenco: Benicio Del Toro, Emily Blunt e Josh Brolin.
Graus de Kevin Bacon: 1 (Josh Brolin contracenou diretamente com Kevin Bacon em O Homem Sem Sombra.)

 

 



[i] O homem quando lançado em uma situação de frequente e ininterrupta estabilidade que ameaça a sua segurança e de seus pares se encontra em um estado de guerra, ou em um estado de natureza. Para coibir o estado de guerra, a fim de se garantir a segurança, diversas concessões devem ser feitas para dar mais força ao gládio da Justiça. Apenas a mão forte de um poder centralizado e rígido é capaz de manter o Gládio da Justiça firme garantindo a segurança. E ironicamente os gládio da Justiça começa cortando os próprios direitos que caracterizam um indivíduo enquanto cidadão. Deixamos de ser primeiro cidadãos, e em seguidas homens, para podermos experimentar aquela mínima e pretensa sensação de segurança.

O maior problema, para Hobbes, é que o homem tem uma tendência ontológica ao egoísmo, colocando de forma simplória. Ao extremo, sempre que uma situação de desordem extrema se apresenta, o indivíduo não hesita e atacar seu semelhante. Em outras palavras, Hobbes afirma que, no Estado de Natureza, o homem é o lobo do homem.

Mário Bastos

Quadrinista e escritor frustrado (como vocês bem sabem esses são os "melhores" críticos). Amante de histórias de ficção histórica, ficção científica e fantasia, gostaria de escrever como Neil Gaiman, Grant Morrison, Bernard Cornwell ou Alan Moore, mas tudo que consegue fazer mesmo é mestrar RPG para seus amigos nerds há mais de vinte anos. Nas horas vagas é filósofo e professor.

11 comentários sobre “Crítica | Sicário: Terra de Ninguém (Sicario)

  1. Assisti esse final de semana e achei sensacional. Esse detalhe de dizer que o personagem de Benicio del Toro é o fio condutor é um pouquinho de SPOILER, mas tá tudo certo (risos).
    Como também assisti Ponte dos Espiões também saquei essa relação entre o temas dos dois, bem lembrado.
    E mais uma vez um texto excelente com ótimas referências, parabéns!

      1. É ele quem vai fazer? Realmente é para se ter uma boa expectativa. A garantia do lado crítico e inteligente de toda aquela realidade deve ser ainda mais aprofundado.

  2. Excelente filme e excelente crítica. Enquanto assistia vi algumas cenas que me deixaram de pé atrás como a extração do prisioneiro no México. Uma tremenda garotagem… Passar pela fronteira? Ficar no engarrafamento?
    Mas com o tempo fui entendendo casas passo dado e os motivos.
    Filme muito bom!!!

  3. grande texto, caro MB. vi este filme e ele automaticamente adentrou na minha lista de melhores do ano. e que diretor é Denis Villeneuve. Como você falou, o enredo é até simples, mas ele conseguiu transformá-lo em uma história poderosa e perturbadora.

    gostei de DEZENAS de aspectos do filme, mas talvez os que mais me chamaram a atenção foram:

    – a mudança de protagonista

    – o fato do diretor dar um rosto e um contexto familiar a uma pessoa que geralmente é tratada como estatística na guerra das drogas. me refiro ao policial que fazia o transporte das drogas.

    enfim. FILMAÇO.

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