Narcos – As veias abertas da América Latina

Narcos – As veias abertas da América Latina

No que possivelmente é uma das cenas mais emblemáticas de Narcos, Pablo Escobar recebe das mãos de um guerrilheiro comunista subjugado de joelhos diante dele por seus homens a espada de Simon Bolívar como tributo de rendição. A espada com a qual o lendário revolucionário libertou a América Latina da opressão e exploração colonialista. Escobar ergue a espada sobre a cabeça do guerrilheiro por tensos segundos, como se prestes a decepar sua cabeça, mas o gesto que se sucede é de uma força muito mais avassaladora. Ele gentilmente toca a lâmina primeiro no ombro esquerdo e em seguida no ombro direito do guerrilheiro, o agradece pelo presente e o deixa partir. Depois comunica a Gustavo Gavira – seu primo e braço direito – que agora ele cuidará da administração dos negócios pois ele, Pablo, tem agora uma missão maior: ele irá libertar a Colômbia.

A cena acima descrita é emblemática tanto pela simbologia, quanto por explicar muito sobre o contexto da série e sobre o seu personagem principal e suas motivações. Narcos é uma série que não ignora o panorama histórico e político no qual os poderosos Narcotraficantes de cocaína surgiram, ao passo em que apresenta um personagem histórico extremamente complexo, com uma sede muito mais por poder e reconhecimento do que por dinheiro. Um personagem que de tão fascinante, parece ter saído de páginas escritas a quatro mãos por Mario Puzzo e Gabriel García Marquéz. Alguém que se não existiu, teria que ter sido inventado. Ou melhor, alguém que só podemos crer que não foi de fato inventado, por quê de fato existiu e há amplos registros históricos que atestam seus atos. Aliás a série reconhece isso desde um primeiro momento quando faz uma citação direta ao gênero literário do realismo fantástico do qual Gabo foi um dos maiores expoentes. Realismo fantástico que nasceu na Colômbia, assim como Pablo Escobar.

Assim, fica evidente a um bom observador que Narcos não é apenas uma série sobre criminosos. Narcos conta um importante capítulo da América Latina, e isso fica evidente tanto no estilo da produção que insere de forma bastante orgânica imagens de arquivo da época na edição dos episódios – dando um tom documental à série que apesar de ficcional sustenta-se firmemente em fatos reais -, quanto na direção e produção dos roteiros. O criador Chris Brancato acertadamente parece ter reconhecido a necessidade dessa contextualização política, histórica e social desde o primeiro momento para que fosse possível contar de forma convincente essa história. Pois de fato não uma integridade histórica típica de documentário o objetivo principal da série. Ocorre que não é possível convencer ao espectador médio que alguém como Pablo Escobar possa de fato ter existido sem que se exponha de forma clara o intrincado cenário político e social, tanto nacional quanto internacional, no qual ele estava profundamente envolvido.

A mão de Padilha

Talvez tenha sido por conta disso, bem como para que a América Latina apresentada não fosse aquela tipicamente estereotipada à qual as produções americanas recorrem que Brancato e os demais realizadores tiveram o cuidado de convidar o brasileiro José Padilha (Tropa de Elite I e II) para compor o projeto como diretor e produtor executivo. A mão de Padilha é marcante nos dois primeiros episódios, que lembram muito Tropa de Elite, só que feito na Colômbia. Aliás, essa atenção da produção também merece todos os aplausos. A série se preocupou em filmar na Colômbia, em locações externas, contribuindo para manter o clima documental e para ser fiel ao ânimo de contar uma história que se relacionasse profundamente ao seu tempo e a seu espaço. Também nesse sentido merece destaque a reconstituição de figurinos, cenários, continuidade e uma fotografia que privilegia a beleza estupenda natural e arquitetônica da Colômbia, e ainda consegue manter um ar sujo e duro, que garante o tom de narrativa policial que a série também pretende ter. Como disse, bem a cara de Tropa de Elite. A mão de José Padilha é marcante nos dois primeiros episódios que ele dirige, mas, como se percebe, pode ser sentida por todo o desenvolvimento da série, mas é claro, que sendo uma obra de José Padilha, sua influência não poderia se restringir aos aspectos técnicos. Padilha sempre sabe muito bem a história que quer contar, e como vai contá-la. E em suas mãos a contextualização política e social do ambiente que gerou Pablo Escobar encontra o tom certo.

Director JoséPadilha and Boyd Holbrook no set de NARCOS. NARCOS S01E01 "Descenso"
Diretor José Padilha e Boyd Holbrook no set de NARCOS

José Padilha sempre se destacou pelo viés político que ele insere – juntamente com tantos outros – em suas obras. A capacidade de reduzir maniqueísmos e de abordar diversos pontos de vista de maneira orgânica também marcam sua linguagem. Tudo isso sem glamourização de qualquer personagem, seja ele “mocinho” ou “bandido”. É preciso estar atento a isso para que ao assistir Narcos você se dê conta que não é apenas uma história de traficantes que está sendo contada. Nem mesmo é somente a história do maior narcotraficante que o mundo já viu batendo de frente com a maior potência política, econômica e militar de seu tempo. Narcos é também a história da América Latina, dos efeitos que a política intervencionista dos EUA causaram sobre a região antes e durante a Guerra Fria, tendo em nomes como Pablo Escobar um de seus mais curiosos resultados. A luta obsessiva contra a ameaça comunista da URSS e a presença constante da CIA e de militares nos países da América Latina para proteger os interesses da política externa intervencionista. As relações com Pinochet no Chile e Noriega no Panamá e a constante desestabilização da América Latina como política externa padrão – recentemente confessa – dos EUA. Todos os elementos da política externa estadunidense estão lá, de forma bastante clara e relacionada à trama principal. Elementos que serão cruciais para o desenrolar da história e para que a mesma seja compreendida mesmo em sua dinâmica narrativa interna. A ação envolvendo guerrilheiros comunistas e o Palácio da Justiça da Colômbia é um exemplo marcante de como Pablo se envolveu diretamente na política de seu país, e como as ações dos EUA contribuíram para tanto. Na mesma medida se dá com a Extradição, que se torna o pior inimigo de Pablo Escobar, uma das principais forças motrizes da trama e justificativas para o escalonamento da violência.

Pablo Escobar, um herói?

Não. Escobar não é um herói. Não é um revolucionário. E não é isso que a série se propõe a mostrar. Mas não há dúvidas de que ele é o personagem principal da história. E somos gradativamente apresentados a esse personagem extremamente complexo de forma bastante competente por Wagner Moura. Não há dúvidas de que Escobar foi um criminoso dos mais frios, violentos e sanguinários que o mundo já viu. E a série mostra isso com clareza. Mas ele era também audacioso e inteligente, e movido por um profunda angústia de quem cresceu em um país desigual e explorado pelos grandes oligarcas, de dentro e de fora da Colômbia. Logo fica claro que a ânsia de Escobar não é pelo dinheiro. Sua ânsia é pelo poder. E a sede de poder associada a um profundo desvirtuamento ético e à uma intensa pressão da política externa dos EUA produz os resultados de uma guerra que quase devastou um país inteiro. Uma guerra de um homem contra o Estado. E com irracionalidade e dinheiro suficiente para tanto. É fácil se perder nas cifras que Escobar movimentava que em muito ultrapassavam o PIB de algumas economias na América Latina.

Os mocinhos

A interpretação de Wagner Moura é imprescindível para nos apresentar esse personagem. Não é preciso muito para apresentar Escobar como o criminoso que foi. Seus atos falam por si só. O desafio está em lembrar que esse personagem não é um monstro apenas. Ele é também um ser humano. É fácil desumanizar personagens como Escobar e mostrá-lo de forma estereotipada. Mas Brancato prefere não recorrer a isso. Seu roteiro é bem resolvido nesse ponto. A todo momento a vida de Escobar é mostrada em sua dimensão privada. Suas angústias são exploradas muito bem por Wagner Moura através de seu já conhecido recurso de profundos silêncios introspectivos e uma olhar carregado de expressividade. Quem conhece a carreira do ator soteropolitano poderia acusá-lo de se repetir ao explorar esse recurso de interpretação. Todavia, em Narcos, Moura parece dominar a força de sua introspecção e expressividade como jamais havia dominado antes. Seu Pablo Escobar ganha força justamente por isso. Nos momentos de angústia e de incerteza, vemos nos olhos de Escobar um homem que parece reconhecer a falibilidade e imoralidade de seus atos, todavia obstinadamente ignora tudo isso e implacavelmente persegue seus sonhos, doa a quem doer. Vemos o homem amargurado e dividido, mas a todo momento também tememos que o monstro venha a avançar sobre nossas gargantas. E é justamente nas cenas tensas de diálogos rápidos e dinâmicos que a interpretação de Moura toma a tela. Muito melhor que seus silêncios profundos, quando Pablo Escobar fala, ele é ouvido e temido. Sempre que Wagner Moura entra cena prendemos nossa respiração e somos tomados por uma profunda tensão. Difícil prever como aquele homem reagirá e agirá para conseguir o que quer. É como se víssemos na tela outros grandes personagens do gênero como Al Swerengen de Deadwood, ou Toni Soprano. Não por acaso a interpretação de nosso conterrâneo tem sido tão amplamente aplaudida e comentada mundo afora. Sem dúvida alguma Wagner Moura nos apresenta um personagem que deixará sua marca na indústria do entretenimento.

Wagner Moura e as veias abertas da América Latina

A escalação de Wagner Moura para o projeto – graças a presença de José Padilha – talvez tenha sido uma das mais acertadas escalações de elenco já feitas por alguém no ramo. A série ganhou muito com a sua atuação. E não, não dê ouvido aos comentários implicantes. O sotaque de Wagner Moura em nada compromete sua atuação. Na verdade apenas se percebe se você não for colombiano – segundo já afirmaram alguns – mas também já ficou afirmado que isso em nada compromete sua atuação. Deve ser mais ou menos o que sentimos quando ouvimos o “sotaque baiano” da Rede Globo. Enfim, quando o ator é bom, isso se supera. E sem qualquer exagero, Wagner Moura, nos oferece uma de suas melhores atuações, e talvez uma das melhores da indústria na atualidade. Não me surpreenderia dele vir a ser indicado para diversos prêmios internacionais por esse trabalho. A medida que a série se desenvolve e fica cada vez mais denso, também fica cada vez mais denso, frio e brutal o Pablo Escobar de Wagner Moura, ao ponto de logo não mais nos darmos conta de separar quem é Pablo ficcional do Pablo real frequentemente mostrado em imagens e na abertura. Realidade e ficção se misturam como nas melhores obras do realismo fantástico. Um realismo fantástico que impressiona muitos daqueles que não vivem a Latino America, mas que para aqueles que como nós vivem esse mundo tem um gosto todo especial de familiaridade.

Me gusta 'las bombitas'
Me gusta ‘las bombitas’

Afinal, a história de Pablo Escobar e sua luta sangrenta contra o os EUA, contra a Colômbia dos oligarcas e contra os rivais dos outros cartéis é parte da história da América Latina e diz muito sobre nosso passado, nosso presente e nosso futuro. Uma luta inglória e que tomou muitas vidas, a sua maioria inocentes, e que muito por isso merece ser tratada com todo o respeito e autenticidade que o tom quase que documental da produção da Netflix proporciona. E é justamente essa história que nos apresentada – e ao mundo – de forma duramente genuína, sem qualquer mistificação além daquela que a própria, por seus próprios tons fantásticos, já confere a si mesma. Testemunhar essa história, contada com muita competência e dinamismo, é sem dúvida alguma – ouso afirmar que Eduardo Galeano concordaria comigo – encarar de frente as veias abertas da América Latina.

***Classificação***

4 (Kevin) Bacons

Mário Bastos

Quadrinista e escritor frustrado (como vocês bem sabem esses são os "melhores" críticos). Amante de histórias de ficção histórica, ficção científica e fantasia, gostaria de escrever como Neil Gaiman, Grant Morrison, Bernard Cornwell ou Alan Moore, mas tudo que consegue fazer mesmo é mestrar RPG para seus amigos nerds há mais de vinte anos. Nas horas vagas é filósofo e professor.

6 comentários sobre “Narcos – As veias abertas da América Latina

  1. Não conhecia este lado “crítico de cinema” , quase “historiador” seu, Mário Bastos.
    Achei perfeitas as colocações quanto ao pretenso jugo de Tio Sam sobre a América Latina. Revivi a leitura da “bíblia” historiográfica da América Latina, obra prima de Galeano.
    Quanto a Moura, nada a acrescentar. Um monstro representando.

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